desjejum

fim das datas
das dívidas
e dos cadarços desamarrados.
prazos expirando - não mais!
como uma bola de ferro
presidiário
camisa listada
preto e branco - não mais!
vira a última folha,
o marcador de páginas
no lixo
agenda volumosa, pesada
no lixo

enrolar-se em lençóis novos
com gostinho gelados
repiando os pêlos e
preguiçando até o dedão do pé

inaugurar diários novos
abrir a lata metálica com rótulo engraçado
de idéias novas e frescas,
guloseimas doces de desjejum.

fim das marcas
das cicatrizes
e do passado.
beijo um
beijo molhado
espalhado
por todos os cantos do corpo
um beijo palhaço
mecânico
quadrado
colando errado
por todos os dias e noites
na boca
que foi boca
mas já não beija
agüenta
o beijo tirânico mal-dado
de passado
nanico
irritado
fraco
beijo seco embolado
beijado.

enfim.

despedida sem título

inda me vem, como presságio
brotando daninha, por entre lacunas de pensamento
até florescer lacrimosa pelos olhos -
sabedoria límpida e vasta
da tempestade que virá.

o mais da dor,
prenúncio de saudades
do saber-se chegando em fins
tão talvez tão voluntários...

ah,
passeando as palmas das mãos
sobre mesas e paredes
deste lugar óbvio e freqüente
deste aqui tão natural, tão doce lar
mas que não voltará.
o tato, e a textura, e a temperatura e o som oco
os cheiros tolos e os detalhes
o rangido da maçaneta
o ventilador que não funcionava
os canais que a tv não pega

e uma partida sempre adiável
pesando, no estômago.
esmaga de medo e de
tempo decantado:
como largar-se a um futuro de menos e de vazio?
só uma espreita, aposta fraca
d'um dia inda vier outra colheita
que vingue em algo tanta lembrança insaciável
que alimentasse esta fome de sabor.

os punhos se fecham, ávidos
e, rígido, o corpo indeciso
se fosse mágico partiria
em dois amálgamas
em duas vidas paralelas
em duas almas

ah, se n'um dia desespero, irreverente
pronto a atear fogo à morada;
no outro, dócil,
prevejo minha sorte desgraçada,
e me adio infeliz.
guarda-chuvas melancólicos
morcegando negros pelos cantos
e pelas latas de lixo,
as marcas de sujeira
que as ondas do mar largam na praia
tomam conta
da calçada,
as meias das avós
todas úmidas e embolotadas,
os pés gelados, enrugados
as calças escuras e manchadas:
pegadas da ressaca mundana
quando a piscina do céu dá goteira
e aquimbaixo as crianças entram nas poças e se resfriam
e os pais se empilham nos engarrafamentos

como é boa
a água
bebendo dos meus olhos.

eu era vento, mas era sonho

me carrega
e eu sou vento
nadando nas árvores
sou um peixe
nadando nas árvores
só meus pés
sentem chão
duro e frio
e frio
sou enorme
meus pés ressoam no salão
sou enorme e desajeitado
sou o mundo
mas corro,
rodando rodando
sou uma folha
rodopiando
sou um vento;
volto ao mesmo lugar
onde passei minha droga de vida inteira
mas volto
voando
tão atento ao teu pegar pontudo na minha mão
tão inteiro nessas vozinhas
que rabiscam o som dos vizinhos
que nem voltei pra casa
caí num buraco de pensamento
essa janela aqui
essa porta óbvia que eu apalpo
são tão bonitos!
- esses teus dedos quase largando de mim
e que descolam infinitamente
doloridos
como o fim d'um beijo
pelas mãos -
mas sou um sonho
desacordando
quando tudo era só mistérios
e o fim vai doer tanto
e o fim
e o fim
abrindo os olhos
fumando nos pés de aquiles
meus cigarros nos seus calcanhares
o vento é feito de lençóis.
à noite eles vão dormir
e nos cobrem.
a noite é feita de lenços e véus transparentes
que pousam nos nossos olhos
como moscas
como aranhas
tecendo teias imensas entre as nossas pálpebras
costurando, costurando
até fechar.
boa noite
durma com os anjos.
minhas bocas estão fechadas para você
não saem palavras - e eu grito, grito
meus gestos são toda a linguagem que me sai
eu sou mudo
eu não falo
das minhas bocas não saem palavras - e elas gritam, gritam
eu só respiro.
sou uma planta, vou bem, obrigado
quem sabe quanto os teus sonhos cor de mel
não eram
afiados

me cortando
me matando

tuas estórias doces e lambidas
deixavam tonto
tonteavam
hip-noti-zavam

as palavras
voejando
como um longo bocejo

conversar com você,
era quase
vomitar.

que saudade.
os cigarros
cor de azul
que ela fumava,

os cabelos
eram como
estar debaixo d'água,

os pézinhos
enrolados
nas finas meias de nada,

e os lábios
uma sede
de espanto,

e as mãos
apertavam
minha alminha,

e os olhos
nem se sabe
quantos,

os suspiros
tão compridos
envolviam tudo,

e os braços
me abraçavam
sem tocar,

o coração,
o coração,

o coração eu perdi.