os mais sábios devem chegar, à noite, com suas luvas de aço:
agarrar as idéias pelo pescocinho, ir apertando, apertando,
"cospe!" eles berram "cospe!"
e mais tarde anotam em seus caderninhos os gemidos-falsos;
e se vão, sem nem pegar o telefone.
ordenham-nas só para dizer que trepam (em torturas)
quando nem lhes agarram as coxinhas, nem acariciam os cabelos
e as idéias órfãs, tadinhas
ficam tão desmilingüidas..!
queriam mordidinhas na nuca metafísica
e soprinhos nas orelhas de borda-de-conceito
deviam vir pra cá dançar comigo, beber umas,
que mais tarde estávamos já caindo nas farras e nos amassos
(elas são umas devassas, mesmo!)
li nalgum lugar: "medir o homem por sua sombra"
e o autor achava isso um escândalo (era-lhe só uma idéia).
enquanto eu, na minha insignificância anônima e sombria,
aponto essas bagunças como uma coisa bem gostosa.
ai, os brincares de ver formas contra a luz!
(se tiro as vestes, estou igual: se envelheço, parecido)
minhas sombras tão bonitas acompanham dia;
e noite, tão bonita, persegue sol - ou é o contrário?
quem estudasse esses pretos: não faria cosquinha?
algum dia perceberiam: é nas sombras em que moramos
e de lá (aqui!) fariam "tsc-tsc" com a cabeça
olhando para os tantos que só nos imaginam carnes sólidas de contra-luz, corpos frígidos de luz, de vida sob aquela luz cada vez mais quente até nos secar as salivas e findar as mil safadezas do escurinho.
"descobri que texto e tecido têm a mesma etimologia."
"como descobriu isso?"
"perguntei-lhes."
o maior elogio a um
nem tem nada a ver com belos ou incríveis:
"nossa, isso aí (seja o que for esse diabo)
haha, já me fez escrever tanto"

e o autor fica sem-graça
percebendo sua cria promíscua, cheia de amantes por aí
é o maior elogio, no fim
porque diz: amo-te porque me fazes amar-me

os outros talvez olhem com olhos desconfiados
meio-engraçado, meio ignorável
quando muito este affair oculto é o mais bonito

(muito mais do que os "já lhe repeti várias vezes"
"nunca cesso de abri-lo de novo"
vejam: muito mais esta exclamação zombeteira:
"já tive filhos com isso." não importa se nunca voltei a buscá-lo)
coloquem em suas listas de afazeres
pôr nos sons um algo bastante invasivo
gritar bastante (isto pouco fiz)
descobrir-se um dos muito instrumentos que se lá gemem
cerrar pálpebras: que a luz é muito frígida
e deixar-se navegar a esmo pelos calafrios de braile
que nos invadem o tato e os músculos
gostar tanto de ti que quase te ver como personagem
daquela fabulação-filme-livro-históriadeboteco que chamamos vida
sentir-te quase literário
quase - aquelas notas finais da melodia preferida
descobrir o parentesco gostoso entre essa tua carne
rabiscada de cicatrizes e dores
e todos aqueles tecidos compridos
mesmo véus que vão se caindo sobre ti qual lencóis
e meio que vamos nos afundando neles (um afundar para cima)
e são feitos de água semi-nuvem nublada
que se desfazem ao toque ajuntando-se à tua pele
e logo tu és um amontoado úmido de cores e panos
viva, amontoado úmido de cores e panos!
viva, amontoado úmido!
viva!

eu estava andando pela música e ouvindo o chão

andando de olhos fechados, como escrevo de olhos fechados agora
escrevendo de olhos fechados, andando de olhos fechados,
o fio da realidade me soando tão mais frágil, se requebrando todo
(quase parece aquelas folhas de árvore que se atiraram no vento
e ficaram presas num fio de teia de aranha: congeladas no ar)
tudos já se mesclando: e de 'onde estou' é tão bonito
(e não ver o que é escrito: é quase falar)
andar no tempo de olhos fechados

hoje eu corri
sem ver o mundo: cerrado nestes eu-mesmos
e normalmente assim passo contando os segundos e os passos
brincando chegar a um limite, manter a conta, medir..
mas não, dessa vez não; haha
abdiquei das réguas:
estava a música e ela se foi me tornando mais real do que o chão que me pisava os pés.
e logo minha pele ficou manchada de som em várias partes
e eu sabia que as matérias de que me fazia eram muito calafrios e arrepios rítmicos percorrendo os meus pêlos
e meus movimentos todos delineavam uns outros universos
que cada músculo se afinava instrumento
e a música ia saindo era do meu própro corpo:
estou incerto instrumento musical e gaguejo!
e nada dos meus passos estarem é caminhando pela rua,
contraindo carnes feitas de sólido, ah não:
os tais sólidos e frios me eram um bonito poema
a que escutava com minhas orelhas acústicas
lá das terras do aéreo e do sonoro
invertindo a relação, se me tornando ponta-cabeça
ruído enorme me invadindo as cabeças, como um exército
que é para metermo-nos a caminhar naquelas estradas
(ah, que nem consigo falar: estou mais preocupado em me dançar e espasmar do que no descrever; que diabos! haha)
ah, que mundo o quê!
minha tara é por algo de muito mais rápido
muito muito passageiro e de que nem se falam muito
aquela sensação assim-assado, aquele removimento:
imagine um voyeurismo apenas dos gestos de limpar os pés nas portas
a fixação pelas relações entre tossidas e timbres de voz
estudos maníacos das palavras entre-resmungadas pelas cozinheiras de boteco;
o meu talvez seja um tanto mais longe e vazio,
porque eu talvez esteja só me coçando, mecanicamente
e nem realmente ligue a nada disso: espreguiçando.
gosto de saber tantos músculos se contorcem nas carnes
quando as meninas e os meninos se fazem de bobos ingênuos
e, por uma simpatia qualquer, um sortilégio infantil,
ganham ganas de se esticar em prosa gostosa
porque sozinhos se expandam tão grandes
que já outro dia esbarram uns nos outros
e se gritam "ei sai daqui!" "ei isso era meu, devolve"
todo o palavreado de simples esvaziar a alma dumas coisas tão incômodas que se nos alimentam
os bebês precisavam de tapinhas nas costas para arrotar
as crianças saem fazendo campeonatos dessas besteiras
eu gosto é de saber como os outros põem para fora esta espécie de dor-de-barriga metafísica e preguiçosa
acho é tão bonito dizerem por aí
"ai, que me falta a inspiração!";
esse verbo gostoso que nos serve às artes e aos fôlegos.
quase me dizem: "ai, falta-me ar!"
delirando efeminados quase em desmaio.
estão ofegantes dalguma corrida de suas horas
ou mesmo asmáticos: quase nem respiram
sufocando no ar-mesmo que nos entorna, líqüido.
e seus prazos pesados, bolas de ferro,
lhes afundando num oceano de irrespiradas,
um oceano de poeiras velhas sugando-lhes o ar:
os prazos expirando, e expirando mais e mais,
já sem brisa nenhuma que lhes acorde.
quase se ouve o silvo triste do ar que escapa,
pelos furos largos nunca tapados - mas dói tanto!
chegar um dia em que expirem completos - o prazo final:
os alvéolos fechando a quaisquer instintos ávidos que se lhes acometam
sem inspirações: sem respirações: sem energia
os Seres da Expiração, das cuspidas e faltas de ar;
cambaleando expirantes e resfolegantes. inspirem!
se para gritar as idéias bonitas,
que lhes requiram as inspirações profundas, cheias,
então, ó vejam: era bom engolir mesmo o mundo!
embriagar os pulmões de vida!
gritar as almas que se nos entulham a fala;
um grito tão forte que invada as bocas dos outros
um grito que irrompa em respirações beijo-a-beijo
um grito de beijos e vida aérea.
o ar talvez seja feito de cheiros e sabores,
e o pulmão lingüístico só pulsaria belo nos discursos.
é tão simples:
gostamos de falar
blablablá blablabli blabló
pouco importa sobre o quê:
se é só para empilhar sorrisos
e esticar as línguas um pouquinho,
um minutinho, enquanto vomitamos sangue
mas se dói? ah, e se dói! ah, e daí?
tudo invenções em gostoso
saborear as respiradas
reviver os olhares
falar, falar, falar
um, dois, três
quanto discutem inverdades por aí
quanto se perdem nas mastigações
rerruminando esgares de nojo.
olha: só possuo um feito.
as suas raivas; os seus medos;
mandaria-os todos ao espaço.
não se gastem em minhas fendas tristes
que é escuro: façam fogueiras
gosto de ser combustível: vim arder!
aquela habilidade infinda
de evaporar em sons mascavos
revirando os olhinhos da molecada.
lambam os beiços, vou lambê-los todos!
vamos atear fogo às roupas uns dos outros,
e rir.
as crianças me ouviam estiradas pelo assoalho
e eu reverberava em suas almas, tentando sair
elas ouviam tantas vezes, mas tantas
e eu gritando: levantem-se e me incarnem!
quantas crianças me abraçaram de olhos abertos
quantas crianças agarraram minhas lágrimas perdidas
quando tudo mais era só chorar comigo
fechar as pálpebras: e sonhar junto.
faca, queijo, pão
estão a conversar, sobre seus dias
"não me decido, imortal
cortar gargantas, passar manteiga
escravizaria mundos! haha
mas só espreito: enferrujo"
"eu alimento! mas inda assim
sofro apodrecer milhão
rimo beijo, limpo rato
meus buracos escondem vento e desrazão"
"sou carne divina, sou sustento
sou não: sou mão: sou cão
me partir dá tanto som:
sou música, desjejum, então?"
faca, queijo, pão
venham cá, e juntos
tes farei misturas múltiplas
faca, queijo, pão
morte, beijo, não
podemos juntos construir
seja o que for.
se você soubesse
o quanto preciso de você
o quanto me falta: tu, infinitamente
e minhas palavras soam vagas e lentas
sem ti: sou tão teu, minha vida
teus risos são o mais perfeito combustível
dos meus ais. sonha comigo!
me desmonta! ah, aparece,
desembaraça meus cabelos
estou tão descabelado..
vem cá me coçar estas páginas
de mansinho. sou pouco: sim sei
mas inda assim; cá vim!
coça minhas entrelinhas gostosas de mentira
e finge navegar as soltas que não tenho:
sou sozinho, ah mentira. mas vem!
que no fim iremos juntos reclamar tudo
e será mais gostoso infelizar a dois.
não desiste destes poucos parágrafos inventados
te gosto: resiste! te beijo escondido
lê mais o resto, que desimporta
se soubesses o quanto me satisfazem teus insultos!
como-os ávidamente, no café, antes de dormir.