folha seca
na teia de aranha
trêmula
adeus março
águas de março
de chuvas de lágrimas
em torrentes inundando tudo
e os bueiros engasgados
de tanto engolir mentiras
vão-se revirando, mordazes;
e em meio às enchentes
e enxurradas velozes
que nos arrastam para o longe, cortando laços
e levam embora cachorros, casas, pessoas
para nunca mais ver;
lá do fundo
das profundezas das ruas-rios
e do oco destes estômagos citadinos,
sobem bolhas
sobem balões de ar, jorrando do encanamento
verdades ocultas por tanto
e pipocam na superfície - já é difícil navegar
em meio a tantas ondas instáveis
e detritos boiando, esbarrando
essa montanha-russa que invadiu o cotidiano -
( mas eu e
mergulhos furtivos no escuro,
aproveitar a piscina gigante, bem-vinda
em meio à destruição )
águas de março
e outono
as folhas secam e caem
abrindo espaço à primavera
bah,
e quem m'importa com estas lágrimas falsas
lágrimas vendidas que comprei de outros
quem m'importa com os esgares que fizer
e as dores que sentir, à noite
sozinho no escuro
quando me encolher de frio e agarrar os lençóis
agonia fraca
tão previsível - quem m'importa
e minha vida não passa da fofoca mais óbvia de revista
essa história de folhetim
escrita antes mesmo de ser vivida, quando então
meus pés já andam rumos pré-traçados
e cambaleio previsível;
e meu desinteresse por tudo
quando chego à noite e nunca grito que estou vivo
grito muito o 'enfim!' da pressa
os dias escorrem lentos, como a baba que me escorre dos lábios
falta-me o tempo! tudo corrido e lento
porque nem sou eu a guiar, não,
os rumos dos outros, destino dos outros, que dor sentir-se assim
mero joguete de vontades mundanas, gerais
clichê-humano, seguindo dores pré-concebidas
da massa,
não conseguir sentir-se real, verdadeiro
se sobram maneiras de expressar o que vem
ah! que irritação, de não me faltarem palavras para descrever
este tantinho,
cada vez mais minúsculo
pois que tão na boca mastigada do povo

um dia, volto a ser meu
teus lábios líqüidos, talvez doloridos
em que me banhar
minha linda fonte
este anarquìa está me doendo, não sei como
talvez algo aqui tenha morrido,
talvez deva abandoná-lo
me sinto vigiado pelos malditos leitores

cálice

passe tudo,
passe carteira, celular, relógio, dinheiro, cartões, tudo
esse buraco de vida, esse furo, goteira no encanamento do mundo
algo se perdeu ali
como um ralo
eu era vento, mas era sonho
se escorria dentre tais valas de mortos, trincheiras duma guerra nunca travada, empilhando velhos
um furo, uma goteira, rachadura na barriga,
como ter rasgadas as tripas, sentir-se um saco de órgãos furado, e eles caindo todos por todos os lados, nem dor mas este vazio, este oco interno
sou um caixão de gente, tronco seco sem vida
o antigo interior gordo de lembrança e tudo em quanto pudesse pôr as mãos
apodrecera, bichara,
talvez por infecção externa, infecção bondosa, novo parasita
que ora se insere lentamente para dentro,
este terror de sentir-se mero casulo, mero cálice
onde os líqüidos se derramam, onde passam as vidas sendo bebidas por gigantes imensos que jamais vi nem verei
passado de mão em mão, cálice, até quebrar
este terror entre os goles,
quando um esbarrão tímido com a ponta das unhas ou mesmo no garfo ou no anel
faz o cristal tilintar
e sou uma redoma de vidro em dor,
uma estufa crescendo meus fungos internos, minhas florestas; cálice sujo
notar-se vidro: ouvir seu próprio som por cima do burburinho do líqüido nadando
tilintar seco tão assustador, que nos mostra vazio
em seu tom
meu nome é cálice
cale-se
por que
ela perguntava
por que
não há porques.
vida maior do que todas as fumaças fracas que nos escapam d'entre os lábios,
como no esforço frágil que fazemos, tolamente, em segurar mentiras -
mas elas voam como moscas sopradas ao vento
por que
ela perguntava
por que
não há porques.
há dor e a correnteza gigante da vida
arrastando tudo que há em seu caminho para o longe, para os longes
como uma boca gigante abrindo-se no horizonte e engolindo meus sonhos,
pelos cabelos, carrapato cósmico enredado em meu couro cabeludo de idéias
a sugar meu sangue e meus pensamentos: titã gigantesco
a puxar-me como fios minha memória, em dor
querendo tragar-me em seu buraco negro tão profundo
por que
ela perguntava
por que
e não há porques.
como uma faca, uma lâmina, uma gilete suicida a cortar os olhos alheios
cortar os olhos como ovos
agarrar o dia pelos cabelos
e gritar-lhe em face:
eu te amo! e estou vivo
vivo como um câncer
a te roubar os doces suspiros
e a sangrar-te - e eu só vivo
é do doce néctar que derramas
quando mordo e cuspo:
sou humano,
imponho-me eterno, impossível
carne poluidora de rios
sanguessuga das almas do mundo;
quando choro,
é porque a sua dor
de traído
de falsário, vingativo
dói em mim.
eu jamais doí,
eu jamais me arrependi:
sou eterno servente dos meus desígnios
dia: anjo solene dos meus pesadelos
amazonas puro, cativas-me pela ordem
imperas em ser a mágoa mais querida do panteão.

homem ao mar

"para onde correr, ao navio ou à praia?"
o outro encolhe ombros, resmunga qualquer coisa,
vira-se de costas.
o primeiro prossegue sua litania
como se ritmando o martelar do coração
palavras vãs reconfortando o silêncio impossível
de espera da chuva passar.
"quem sabe, devia meus últimos fôlegos
a alcançar a lisa popa
cheia de cracas e a escada de corda
que me salvar do mar revolto;
ou a distância já é tamanha
que meu rumo certo é mesmo o leste
sozinho, eu e meus braços,
para a costa estranha (e seca)?"
a chuva cai sobre ambos
mas enquanto um, indeciso
argumenta extenso sobre tudo e nada;
o outro, quieto, infinito
ocupa-se em secar as meias.
os dois atendem pelo mesmo nome
e conhecem a mesma resposta:
só quando a chuva parar.

enquanto isso, o barco vagueia nos pertos
e os braços vão cansando:
a chuva já vai parar

(de agosto)

olhar as cataratas e pensar 'sede' vontade de bebê-las inteiras andorinhas surfavam no ar revolto semi-nuvem dormindo embrenhadas no som mais ecoante uma rave de aves unidas em negro cacho ou colméia de pássaros molhados neste ponto em que o som se acumulava mais infinito ali deviam ser atravessadas pela alma da catarata, e aprender a voar

rasgo

minha voz
s'apertando, emburrada
muito se muito me maldizendo
de não voar mais em veloz
vestida de brancos
toda fantasma, pálida
quando subia da boca
nos grandes tempos
do frio que m'apertava o coração;

minha voz
pertada, ah tristura
de nem mais saber, esquecida
dos lábios molhados
garrando, a beijos ligeiros
tanta fumaça falsa
que floreasse no ar, à frente, bela
sujando narinas torcidas
tosses cinzas e muita solidão;

minha voz
que já se grita, enferma
endiabrada
por tantas idéias falsárias
quando em tudo
queria gritar eu te amo
deitar debaixo da árvore
da ponte, da vida
m'apaixonar mil vezes em novo
dizer não! não mesmo
a frio, a cigarro,
à massaroca de mentiras duras
em embrulho de mistério lindo
e vago
que enterrei debaixo do travesseiro
mas já nem reconheço minha cama
que deito e sonho ais! a noite inteira

voz,
que nem é minha
me assalta a cozinha, súbita
onde jamais esperei crimes;
te denuncio
solitária,
infeliz,
esquecer-te num dia qualquer
cortar-te fora, rasgar-te
preferia ser mudo a te ter tão traidora e
sombria.