desjejum

fim das datas
das dívidas
e dos cadarços desamarrados.
prazos expirando - não mais!
como uma bola de ferro
presidiário
camisa listada
preto e branco - não mais!
vira a última folha,
o marcador de páginas
no lixo
agenda volumosa, pesada
no lixo

enrolar-se em lençóis novos
com gostinho gelados
repiando os pêlos e
preguiçando até o dedão do pé

inaugurar diários novos
abrir a lata metálica com rótulo engraçado
de idéias novas e frescas,
guloseimas doces de desjejum.

fim das marcas
das cicatrizes
e do passado.
beijo um
beijo molhado
espalhado
por todos os cantos do corpo
um beijo palhaço
mecânico
quadrado
colando errado
por todos os dias e noites
na boca
que foi boca
mas já não beija
agüenta
o beijo tirânico mal-dado
de passado
nanico
irritado
fraco
beijo seco embolado
beijado.

enfim.

despedida sem título

inda me vem, como presságio
brotando daninha, por entre lacunas de pensamento
até florescer lacrimosa pelos olhos -
sabedoria límpida e vasta
da tempestade que virá.

o mais da dor,
prenúncio de saudades
do saber-se chegando em fins
tão talvez tão voluntários...

ah,
passeando as palmas das mãos
sobre mesas e paredes
deste lugar óbvio e freqüente
deste aqui tão natural, tão doce lar
mas que não voltará.
o tato, e a textura, e a temperatura e o som oco
os cheiros tolos e os detalhes
o rangido da maçaneta
o ventilador que não funcionava
os canais que a tv não pega

e uma partida sempre adiável
pesando, no estômago.
esmaga de medo e de
tempo decantado:
como largar-se a um futuro de menos e de vazio?
só uma espreita, aposta fraca
d'um dia inda vier outra colheita
que vingue em algo tanta lembrança insaciável
que alimentasse esta fome de sabor.

os punhos se fecham, ávidos
e, rígido, o corpo indeciso
se fosse mágico partiria
em dois amálgamas
em duas vidas paralelas
em duas almas

ah, se n'um dia desespero, irreverente
pronto a atear fogo à morada;
no outro, dócil,
prevejo minha sorte desgraçada,
e me adio infeliz.
guarda-chuvas melancólicos
morcegando negros pelos cantos
e pelas latas de lixo,
as marcas de sujeira
que as ondas do mar largam na praia
tomam conta
da calçada,
as meias das avós
todas úmidas e embolotadas,
os pés gelados, enrugados
as calças escuras e manchadas:
pegadas da ressaca mundana
quando a piscina do céu dá goteira
e aquimbaixo as crianças entram nas poças e se resfriam
e os pais se empilham nos engarrafamentos

como é boa
a água
bebendo dos meus olhos.

eu era vento, mas era sonho

me carrega
e eu sou vento
nadando nas árvores
sou um peixe
nadando nas árvores
só meus pés
sentem chão
duro e frio
e frio
sou enorme
meus pés ressoam no salão
sou enorme e desajeitado
sou o mundo
mas corro,
rodando rodando
sou uma folha
rodopiando
sou um vento;
volto ao mesmo lugar
onde passei minha droga de vida inteira
mas volto
voando
tão atento ao teu pegar pontudo na minha mão
tão inteiro nessas vozinhas
que rabiscam o som dos vizinhos
que nem voltei pra casa
caí num buraco de pensamento
essa janela aqui
essa porta óbvia que eu apalpo
são tão bonitos!
- esses teus dedos quase largando de mim
e que descolam infinitamente
doloridos
como o fim d'um beijo
pelas mãos -
mas sou um sonho
desacordando
quando tudo era só mistérios
e o fim vai doer tanto
e o fim
e o fim
abrindo os olhos
fumando nos pés de aquiles
meus cigarros nos seus calcanhares
o vento é feito de lençóis.
à noite eles vão dormir
e nos cobrem.
a noite é feita de lenços e véus transparentes
que pousam nos nossos olhos
como moscas
como aranhas
tecendo teias imensas entre as nossas pálpebras
costurando, costurando
até fechar.
boa noite
durma com os anjos.
minhas bocas estão fechadas para você
não saem palavras - e eu grito, grito
meus gestos são toda a linguagem que me sai
eu sou mudo
eu não falo
das minhas bocas não saem palavras - e elas gritam, gritam
eu só respiro.
sou uma planta, vou bem, obrigado
quem sabe quanto os teus sonhos cor de mel
não eram
afiados

me cortando
me matando

tuas estórias doces e lambidas
deixavam tonto
tonteavam
hip-noti-zavam

as palavras
voejando
como um longo bocejo

conversar com você,
era quase
vomitar.

que saudade.
os cigarros
cor de azul
que ela fumava,

os cabelos
eram como
estar debaixo d'água,

os pézinhos
enrolados
nas finas meias de nada,

e os lábios
uma sede
de espanto,

e as mãos
apertavam
minha alminha,

e os olhos
nem se sabe
quantos,

os suspiros
tão compridos
envolviam tudo,

e os braços
me abraçavam
sem tocar,

o coração,
o coração,

o coração eu perdi.
dezembro vem, o mundo um rebuliço
eu sou cada dois dias outro,
e cada dois outros sou mais um.
havia poemas no guardanapo
ingenuinhos,
borrados, errados e finos,
todos embrulhadinhos.

havia rimas e injúrias
de que todos gostariam
mas hoje não, não.
(hoje, é só azul)

tenho mil poemas, mais de mil
rabiscos em lenços e guardanapo
esquecidos dobrados, largados
atrás da orelha ou do cartão.

mas quando finalmente
vem a hora mais bonita
de sacá-los, rápido,
e limpar lábios de meninas,

tudo voou.
tão fingindo terem nascido sessenta anos atrás
não são nem os pais: são os avós
duas gerações de mentiras
olhando para trás feito o diabo
do alto da dignidade daquilo que já foi tão forte
cuspindo nos poucos brotos que inda surgem
no caminho enorme que se abre
(que é luz e dia úmido)
mas só sabem dizer-se alheios e repetindo
usando de mapas mortos arrancados de museu
se esbarram por nem se verem
e derrubam-se, irritados
cegos, em sua religião do ontem.

Rádio

- Oi, meu nome é Rádio, e estou sem sintonizar uma estação já há duas horas e meia.
- Pessoal, dêem boas-vindas ao... Rádio.
- Bem-vindo (rádio).
- Bem, uh, Rádio, conte-nos como você começou a... beber.
- É assim. Tiraram meus óculos hoje, de repente. Bem rápido, assim; logo me deram de volta. Mas deu uma agonia sabe, eu de repente não via mais os outros.
- Rádio, você usa óculos?
- Ah, é que agora estou sem né? então. Eu sou míope, sem eles. Num segundo nós éramos Pessoa: uma grande Pessoa orgânica muito ajustadinha, as engrenagens se movendo loucas
- Desculpe, você não era um rádio?
- Eu era mais como mãos e olhares, quando você sabe onde colocá-los. Meus nervos se conectavam direto na carne dos outros. Eles se mexiam em mim. Eu neles.
(bocejos e tossidas na roda)
- De repente eu já não via mais ninguém. As pessoas se moviam sem mim. Desconectado. Desplugado. Me tiraram da tomada.
- Olhe, eu não estou entendendo. Alguém quer colocar algo?
- Seu Rádio, desembuche logo, ainda tem muita gente pela frente.
- Minhas mãos iam para a boca e eu fingia bocejar. Ligavam para mim e eu não atendia. Faziam piadas e eu não ria. Trocava as datas. Errava as contas.
- O que isso tudo tem a ver? Você não é alcoólotra?
- Comecei a ir aos lugares errados. Tentei marcar com o médico e ele não atendia. Fui no consultório e ele saíra há quinze minutos. Esqueci a carteira em casa.
- ...aí então você começou a beber.
- É assim, eu falo e ninguém me escuta. Oi, meu nome é Antena, estou transmitindo numa freqüência que ninguém ouve. Oi, meu nome é Rádio, eu não sintonizo em vocês. Oi, o mundo é uma grande Estação, e hoje eu acordei fora de sintonia, será que ninguém consegue entender isso?
- Mister Radio, you're not welcome here.
- Oi, eu estou tentando existir, Oi, alguém me escuta? eu nem enxergo mais ninguém. Minha cabeça está doendo, tirem suas mãos de mim! Oi, eu falo, falo, e eu estou caindo num abismo, e lá em cima o mundo e eu fico só na queda infinita vazia e sozinha, nesse buraco onde não há eco e não se ouve nada. (Il est fou!) Oi, eu sou um Rádio, eu preciso me ajustar, preciso apertar meus botões e manivelas: eu vou almoçar na hora certa e tomar café depois, vou dormir oito horas e beber vodca até cair, vou fumar que nem uma máquina e vender minha alma a todo mundo; talvez assim eu sintonize em algo, eu troque de freqüência e encontre alguém que me plugue de novo no mundo, alguém que pegue meus fios e veias e engate nos seus, pegue minhas mãos e saiba onde pô-las. Oi, vamos transar? Oi, vamos fundir nossos corpos? que eu preciso sintonizar no mundo, eu preciso crescer raízes, crescer âncoras - porque aqui onde eu moro venta muito sabe? Oi, meu nome é Folha e eu caio sozinho, não encontrei nenhuma teia de aranha, nenhuma amarra. Oi, Oi! tirem essas mãos de mim! Eu vou com vocês, me levem para a prisão, me joguem numa vala qualquer, eu devo estar bêbado! bêbado demais para os alcoólotras, eu achei que aqui saberiam falar comigo. Oi, meu nome é Mãos, e eu sou dois, e é por isso que eu fumo e bocejo e coço o cabelo e me escondo nos bolsos, e é por isso que eu me rôo inteiro e me agarro nos outros, e é por isso que eu quero sair nu no frio e juntar meus membros, eu quero dançar uma dança no chão certo, uma dança que pise nos pés bonitos que gritem, que gritem muito! Oi, meu nome é Rádio e é Antena e é Mãos, eu queria ser os três, dançando como os dedos num teclado, e existindo em uníssono, até que minhas pegadas fossem não só tristeza e ruído - porque eu nunca sintonizo! - até que saísse música dos meus olhos e das minhas mãos, dos meus suspiros e de quando eu tremo muito no escuro, sozinho e distante como estática perdida: até que essa estação que não encontro fosse criada: até que meus pés dançassem como mãos num teclado, formando palavras e bonitezas e todos me lessem os olhos e me soubessem consigo, universo, pessoa-mundo organismo, vida, nós Folhas espalhados unidos pela teia de aranha: e quando ventar farfalharemos sintonizados como rádios, seremos música com nosso farfalhar lindo...!
...
- Oi, meu nome é Paulo, e eu...

pneumática

ela era ácida e linda,
a das dobras selvagens
flácida e míngua, língua
ardente a passear pelas margens
dos seus lábios carnudos, bojudos
com banhas fartas em anéis
os olhos mudos, tesudos
ela custava vinte-mil réis
mil beijos nessa barriga amiga
tão volumosa e pneumática
pneus grossinhos de lombriga
da adorável puta simpática
a minha bolinha feia e errática
a minha gordinha asmática.
por que não?
(um rascunho)

o médico me mandou parar.
eu estava muito, muito; o médico olhou para mim nos olhos e disse: pare.
no começo não entendi muito bem, tentei até argumentar com ele. fiz caretas. grunhi dúvidas. suspeitei de seu currículo. olhei os certificados pregados nas paredes.
mas ele fora categórico: pare.
por quê doutor?
o médico olhou em mim fundo nos olhos, mas era como se ele não estivesse me vendo. eu quase sentia ele me procurando, havia um certo tremelique na pálpebra direita, a boca torcida em vão. havia muita luz no consultório, luz branca de doentes, sobre superfícies e almofadas brancas, e os papéis brancos em cima da mesa branca, o jaleco branco no branco dos olhos dele; eu estava bastante ofuscado, as luzes apontavam para mim. aquela claridade monocromática, e ele tentava me olhar fundo nos olhos - mas meus olhos sempre foram negros. eu sabia que ele não me olhava muito bem, mesmo com tanta brancura. ou por causa da brancura. ele olhou para mim com aquela palidez mórbida de médico, ajeitou o jaleco no corpo, começou a mudar os papéis de uma pilha branca para outra pilha branca; e disse que, para começar, não fazia bem à minha saúde.
não faria bem. minhas mãos, para começar. o que tem minhas mãos, doutor? elas ficam tremendo, ficam tentando sair do lugar. não dá para pará-las quietas. está tudo relacionado. não faz bem; você e suas mãos, agarradas nos quadris, roçando o cabelo. não fazia bem.
mas isso era só o início: ah, porque era quase um crime. e minha mulher ia me abandonar. e os meus amigos iam me trair. meu emprego ia me engolir. eu ia parar de combinar roupas. eu ia ficar mais míope. podia começar a tossir todo dia (ele tossiu bastante antes de dizer isso).
foi bastante estranho, mas ele era médico, doctori absolutum estava escrito, nos certificados enquadrados por todos os cantos, e médicos são para isso. eles nos dizem o que é higiênico e o que não é. eu estava sujo, ele dizia, dava para ver nos meus olhos negros. sujo, estava sujando seu consultório ali mesmo. eu tentava olhar bem nos olhos dele mas a brancura me doía. eu acho que eu doía nele também, mas todo mundo acha isso. minha impressão fugidia de que fazia mais mal era a ele mesmo, essa negrura nos olhos, essas mãos amassando a receita do remédio, essas gotas de suor umedecendo o couro branco tranqüilo da cadeira. o olhar dele, escondido debaixo das pálpebras grossas (a da direita tremia um pouco), tentava reprovar, tentava me acusar e dizer: ali, ele ali, olha ele.

pare.

ele estava até certo, como eu vim a decidir. quando eu andava na rua, era como se... como se entrasse em mim uma coisa... como se eu estivesse andando mas
as minhas mãos me agarravam nos quadris. eu olhei bastante no espelho, fiquei encarando minha imagem, até ela ficar toda borrada. era feio. era bem sujo mesmo, o médico tinha razão. eu virava uma rachadura preta na parede branca, uma mosca esmagada, um erro.
mas quando eu saía na rua as mãos saíam de mim e iam para a rua também. não havia jeito de deixá-las quietas, em casa, nos bolsos, cruzadas, inquietas..

eu ficava olhando as pessoas andarem, e notava a quantidade de sacolas. carregavam coisas, filhos, pessoas, livros, guias turísticos. eu resolvi que precisava de uma sacola.
era um grande avanço para mim, eu telefonei para o médico, eram 3 da tarde, ele acordou furioso e não entendeu nada, eu dizia doutor, vou ser sacoleiro, ele me mandava à merda.
aí no início eu peguei um saco plástico e fui até a pracinha, coloquei uma pedra dentro, e saí na rua. foi muito gostoso. acho que foi o melhor dia em dias, as minhas mãos tão atarefadas, nem me viram caminhar tanto, elas ficavam reclamando do peso, do barulho, do tempo, reclamavam muito, nem me incomodavam com suas perguntas, com sua tremedeira e me apertando a barriga; elas se distraíam. sossego. andei sem parar durante um dia e meio.
mas as pessoas me estranhavam com essa história de sacola. e era estranho mesmo. e pesado. a sacola acabou furando e eu sentei numa escada e fiquei muito triste. minhas mãos davam socos na pedra e se cortaram um pouco até, meu nariz espirrava, minha barriga ficava caminhando sozinha.

minha segunda idéia foi fazer compras. durou um mês, todo dia eu iria no supermercado três vezes. mas eu não agüentava direito e ia um pouco mais. teve um dia em que eu fui doze vezes, os atendentes até estranharam. eu fingia que não era comigo. muitas sacolinhas brancas de plástico, e muitas tarefas. fui feliz.
minha casa estava muito entulhada, depois de algumas semanas, e as sacolas foram saindo do controle. de noite ventava muito, e elas faziam uma barulheira, o vizinho de cima até reclamou. eu não conseguia mais dormir. resolvi que não iria mais fazer compras. sentei na cama, e chorei muito, foi um dos piores dias.

quando eu saía na rua, meu corpo começava a sacudir. as pessoas que passavam por mim percebiam o que havia comigo, percebiam o que eu estava fazendo. e aí elas começavam a pular, e lançar foguetes e gritar muito, tudo muito sutil e só alguém com uma lupa muito boa perceberia. mas eu percebia, porque era tudo dirigido a mim. minha pele ficava toda balançando, os sons dos sapatos alheios se encaixavam, eu percebia que a senhora de vestido feio estava mancando o pé direito, enquanto aquele menino com camiseta de colégio passava mais rápido de propósito, eles riam de mim escondidos, eu começava a tremer, a dançar sem controle. as pessoas me olhavam estranho, se fazendo de inocentes, enquanto faziam uma barulheira linda, que me tomava o coração nos batimentos, tumtum tumtum, minha cabeça quicava.

o médico me mandou parar, ele estava certo, ele sempre estava certo.
viverei em frança
cercado de mentiras e jogos
fumando a mais não poder

levarei café e farofa
e uma vassoura.
varrer o sena
me sustentará

vou explodir de filmes
de invenções idiotas
de histórias tortas
de tropeções e erros

algum dia.
inventar a história das novas cores quando a vida é cinza;
cinza de cigarro apagado na boca
resmungando..
acelerar as vidas e os sopros
o corpo sentado, dormindo
só correndo se sentia o vento arrastando os cílios
as mãos dormindo, os pés dormindo, os lábios dormindo
só faço dormir minha vida inteira

café, mais café,
por favor
novembro vem,
o vazio do mundo, e o tempo voando, e nada fica
cuspes empoçados criando dengue
há que sentir na barriga
quando a barriga gritar muito
você se pegar olhando para baixo
que diabos está dentro da minha camisa
o umbigo te olha de volta
fazendo caretas doendo sorrindo
dá um soco nele, xinga tudo
rola no chão
vira uma confusão
de roupas, de cabelos, de punhos

há que espernear muito
tanto tempo você me foi tudo que eu sempre queria, eu te vejo e sinto teus beijos gostosos em todas as minhas peles e lábios orelhas narizes, você me passa as mãos e os carinhos em meus redores inteiros e eu sinto! já foi tão bom, ah como você era linda, linda linda, hoje seus afagos nada mais são do que memórias me roçando as bochechas úmidas com teu contato prolongado, como te amei, enrolo meus braços em ti mas nada sai deles, nada novo, só sinto-lhes antigas, d'outros tempos; te mordi e mastiguei inteira, tivemos tantos filhos! e eles se foram, e nós cansamos, hoje somos talvez estéreis juntos e eu preciso ir atrás de outras - outras como ti, bem sei; e sei que és só isso, infinita nos poucos segundos e nunca mais. meus segundos passaram, não conheço se voltam.

assisti à performance de dança

bem me quer,
mal me quer,

saíam dedos dos olhos e da boca enquanto ela vomitava pelas pernas o resto do corpo fora.

no mais, quase uma ciência
passeava os dedos nos meus cílios
e eles faziam caras feias
saía um barulhinho, tímido

te senti roçar meus olhos
te senti concre-ta-mente
as pálpebras fechadas, os cegos
mas os cílios bengalas de tato
te apalpei com meus pêlos e você estava

o barulhinho, tímido
de você existindo.

levanta-te e fala

o maior mudo de todos
ele não era mudo: era mutista
porque mudava voluntário

é claro que não deixavam
e ficavam lhe perguntando
lhe indagando as mais bonitas
as mais filosofias
ele num silêncio audível

levaram-lhe para o tribunal
julgar-lhe por seu silêncio
julgar-lhe por omissão
fizeram-no falar
o rei dos mudos falou.

o grande discurso deste rei dos mudos
era tão horrível
ele falava mal, suas palavras eram meias
era tudo sempre na metade, meio capenga
gaguejava cuspindo, voavam salivas longe
era quase nojento

ele odiava falar
dizia isso, mil vezes, mil e duas
ele falava e falava quanto odiava falar
ele falava com um ódio...
com um ódio da própria fala

havia tanta ira em cada letra que lhe roçasse a garganta
tanto ódio multiplicando, desabando
ele gritando de dor, gritando que gritava de dor
era horrível, era infinito
quanto mais falava mais doía
mais odiava e falava do ódio berrando
berros sobre berrar os berros
ele estava em combustão

as sílabas, lembro da vez,
perguntaram-lhe por quê
como por quê? todo porquê é falado
pensava eu
mas nessa hora ele engasgou
o juiz bateu o martelo e soletraram seu nome, lentos
ele ouvia com as orelhas girando
sua boca mugia tão grave que a mesa vibrava
perguntaram este é seu nome
a garganta dele se contorcia
começou a arrotar a primeira resposta
mas o atrito foi demais, e explodiu

todos que saíram de lá
viraram surdistas
que os sons do mundo já lhes doíam mais que mais

(a bartleby)

mãos

minhas mãos nos quadris
pare de roer as unhas e minhas mãos te tiram as mãos da boca
percebi que odeio mãos

minhas mãos tortas que não sei onde pôr
sempre vão para os quadris, eu paro pensando, conversando
nos quadris, fico tão angulado, os cotovelos apontando
as mãos nunca sabem onde ir

eu te olho e as tuas estão na boca
as minhas sabem onde ir: elas te interrompem
pare de roer as unhas, pare!

as minhas mãos me agarram os lados da barriga
elas te agarram teus pulsos lindos e os arrancam da boca
pare de roer as unhas, pare!
eu nem notava que eu fazia isso

minhas mãos pousam assim, me apertando
meus cotovelos apontados como asas de galinha
minhas mãos grosseiras agarrando nas tuas,
eu me imponho em ti sem nem perceber
sou horrível, sou anguloso, sou imperativo

pare de roer as unhas, eu te ordeno!
quero mandar nas tuas mãos
já que não mando nas minhas

talvez por isso eu fume
talvez por isso eu roa as unhas
talvez por isso eu goste dos bolsos
- é para salvar minhas mãos

vou adotar uma nova política de mãos.
exercício 1:

olheie algo,
delire-os.
parar para falar
nossa estou tão louco!
é ser menos louco

'estou sentindo
a sensação mais bonita
dos quatro universos!'
é que não sente mais

falar, é dos fins
falar, é fim
que interrompe delírio.
entope a garganta bêbada,
com palavras grosseiras,
que se por um lado talvez mintam tudo
(e disso nem podemos culpá-las, pobrezinhas)
por outro jorram aos borbotões
ininterruptas, represa ruindo.

e nada mais de gritos ecoando internos sem sair
nada mais de ecos dos soluços da alma
rugindo ampliados no estômago vazio.
a boca aberta e as loucuras fugindo
a boca aberta e a alma escorrendo, como baba.

na superfície

ei, motorista! abre a porta
como no ponto? abre - a - porta
o ônibus tá parado! tamos a 1 metro do ponto
abre a porta, porra - por que você não abre a porta?
não vai abrir, ooi, abre a porta
sabe o que é isso? hein? tá me ouvindo?
eu sei o que é isso! (abre logo a droga da porta)
você tem é medo de mim, motorista (abre, abre)
medo. (tá me ouvindo?)
sabe, você acha que essa porta te livra de mim
que do alto do teu assento de piloto
teu mundo todo gira em eixos bonitos
bem longe do teu controle. só abre a porta no ponto.
você nem decide. (pelamordedeus aaabre)
eu parado aqui. sabe o que é isso?
você quer uma camisa de força, ouviu?
você tece com linhas de docilidade dos outros
com as linhas finas e maleáveis de todos dóceis
você não agüenta um fio de serpente irracionante
que te obrigue a abrir a maldita porta fora do ponto
que te obrigue a furar o padrão-rei da tua vida
ah, e não é que você seja dócil
como ficam dizendo os arrogantes dos nietzscheanos
não, você não é dócil, você não obedece
eu vou correr pro próximo ponto
e te pegar a tempo seu desgraçado
vou chegar sujo e suado
com ódio exalando
enxertar um pouco de pedestrismo no teu ponto
talvez eu corra a pé toda linha de ônibus
só pra te deixar louco.
sabe o que você é?
você engasga com linhas de sonho
que te cortem teu ônibus em dois, em três, em mil.
você se embola nelas, seu puto.
quando cruza com pessoas andando em música
quando quase atropela as pessoas ouvindo chão
você é chão, seu muito-certinho-determinado,
você se faz chão que o pé de todos pise
faz todos pisarem chão, teu ridículo
você é empata delírio, isso sim
piloto de uma nave empata-delírio.
às vezes tudo que falta é desculpa certa
nós tamos na beira
e temos coragem
mas falta inda quele empurrãozinho
espécie de capricho metido
só pro orgulho ficar por aí, se achando
que o orgulho é mesmo muito faceiro.

os suicidas de escorregão
as avalanches de soluço
as mortes de peteleco

todos foram meio assim,
podiam ter sido meio assado.
um tropecinho qualquer,
uma vida qualquer,
por que não?
idéia muito esculhambada que me vem,
sorrateira,
cochichando nos meus ouvidos;
e quando olho para ela:
nada. e nada. vazio.

se vão passando os dias,
e ela lá, paciente..
cochichando, cochichando.

sensação de que esqueci algo antes de fechar a porta de casa;
intuição de que é melhor sair de guarda-chuva hoje;
palpite sem delongas,
que me raciocina assim qualquer,
casual, acabado, e lá-se-foi;

diabinho no meu ombro,
me esperando virar a cabeça
pra pular dentro, e virar mundo.
língua-lengua

não precisa, não, não, é tão calmo, é às noites, é preciso, é preciso, navegar é preciso viver não, já diziam, já diziam, vai ser sempre, você é tão sempre, você é tão sempre! ai que eu te amo, eu te quero sempre, sempre você

vã guarda

antigamente
as gentes
ficavam muito muito muito
quando viam
seu fulano
fazer uma bagunça daquelas.

eu não sei bem
se sei se não,
quê isso, menino!

sou tão burro
nós semo tão vagabundo!
bundeantes,
é o que dizem.

i as bagunça
si se ocorrem
ficam bem mudas
secas,
lá no cantinho
nem vi.

ai!
fico feliz
i saio na rua
a gritar feliz
os nomes todinhos
só de te ver
cantar-te azul
pintar-te pinta
saber-te qualquer coisa

quem me diz
se isso tem
zil anos ?

eu hoje digo
hoje isso é hoje!
eu sinto hoje é na barriga
a barriga hojeando doida
me carrega às rua
eu nem sei bem
oi barriga,
vamos dançar?
a língua
se abraçando
todinha
de paixão

rebolando
na boca
tropeçando
as letras

ela quase pula
sai dos dentes
faz-se chão

ela germina
língua nova
língua-lengua

palavreado torto
de borbotões
hiperbólico
o-no-ma-to-péi-co

um dia assim
talvez quem sabe
é bem possível
se mesmo for

que isto
tudo
tenha
um
nome.
estou vendo algo,
eu acho
lá longe, meio embaçado e troncho
oscilando, e eu nem presto muita atenção.
eu vou pra lá, meu amor
eu acho
e quero que você venha comigo
como dizem por aí
todo dia toda hora
"e se as nuvens não são um banquinho,
pra gente lamber o céu?"
ah! te amo porque me soas tão arte
ah, te arto porque me soas tão amo
poeta!
não pára,
tua voz
me tece
palavras
quase beijos
na minha alma

poeta,
vagueia,
teu sopro
passeia
nas minhas veias

poeta...
comigo
marcado,
meu fundinho
sozinho,
amigo,
amado...

poeta:
me lembre
ser tão,
ser quase,
ser vão:
ser sempre.
o grande poder
daquele criança
que todos lhe dizem
pareces fulano
pareces com tal um
me lembras os tempos de x
me sabes o gosto de outrora, ah! sabes muito,
tu és, Ah! tu és...

estas roupagens bonitas
estes gestos falares
jeitinhos tão... caetanea-dos
você é tão cazuza!
ah, adoro-te, rimbaudzinho
ih, minha linda, ai fada impossível
linda noitinha amarga que me mastiga os ventos
você cheira tanto, tanto porto alegre!

oi você me lembra um sonho que eu tive
ai você me soa tão azul, não sei porquê
ai você está tão sujo,
que lá nas paredes flácidas dos teus pulmões,
você respira muito, dois m's e um d mudo,
estás tão.. drummond!

espontaneio

valem aquelas as mais que sejam
as espontâneas, as novas!
as mais assim, cruas, diz-se assim
as que saem sem querer (ops, fui eu!)

não não, não valer às planejadas
às premeditadas criminosas
tão babadas e remendadas

amo pouco os que espontaneiam planejos
os que sozinhos se são vestidos
os que não se sabem nunca assim, dir-se-ia
bêbedos,
sem preocupar-se com não-ditos...

amo mais aqueles, que planejados espontaníam.
espantam!
soando sempre virgens e belos
como os murmúrios gostosos de prazer
quando mastigamos as flores mais bonitas
do jardim (que nunca se recuperará)

história da arte

eu entrei no quarto
a Beleza olhou para mim (com olhos d'água)
ela estava chorando.

eu lembro que antes,
ela era bonita,
o quarto era quentinho,
eu era tão longo!
ai, eu gostava.

nunca entendi direito essa Beleza
que ficava o dia inteiro em seu quartinho
tricotando um vestido muito bonito
e galinhando de noite nos bailes.
nunca entendi.

eu sei bem que isso se foi
eu entrei no quarto então
ela estava bêbeda, melhor,
de ressaca.

a Beleza estirada no chão,
babava uma voz suja de pato
passava maquiagem na cara, no olhos, no cu
era triste, ela babando velha, ah não
eu me sentia triste, chato.

conheci o marido dela outro dia
ficou velho e gordo, nem sei se é marido mesmo
velho e corno, eu bem sabia
passando de ladainhas doces:
"querida, queridíssima (ai, como nos amamos!)
ontem foi muito bom, não foi? (ah se foi!)
ah, como fizemos muito ontem! muito, nem lembro até!
estou tão cansado, e hoje é domingo,
vamos passar o resto da vida vendo tv?"

eu entrei no quarto, a Beleza era uma rainha
ela brilhava do alto de seu trono de mil adjetivos
o vestido fino, a luz bonita, os perfumes caros
eu quase morri diante de tanta chatice

eu entrei no quarto, entrei chutando a porta
arrancando roupa, cuspindo palavrão;
depois eu nem sabia o que fazer ali
a Beleza tava ali, estirada, feia,
me oferecendo uma birita,
eu fiquei. (gordo velho imundo casado)

eu entrei no quarto,
acho que estava chovendo, ou algo estúpido.
eu estava cego, pálpebras cerradas
meus fones de ouvido - eu não ouvia nada
minhas roupas metidas - eu nem sentia frio

a Beleza ficava lá, fazendo strip
tentando chamar a atenção.
eu só fiquei dançando na frente dela (nem percebi)
me diverti muito sozinho, balancei balancei
dei uma festa depois, no quarto mesmo.
a Beleza não bebeu nada porque ela é alcoólatra
e não é mais amiga de ninguém.

eu entrei no quarto
era hoje
era amanhã
eu vou ali só pra comer.
chove,
na cidade perfeita.
as gotas caem manchando tudo,
e eu sei que este dia é para sempre.

chove,
dum frio doído gostoso
a chuva, fininha,
soando tão bonita.

chove,
eu gosto dos vagabundos,
converso com eles,
eles gostam de mim.

nas coxas

eu bem tocava violão nas coxas
porque em pé faltava aquela cordinha
eu bem escrevia tudo nas coxas
mas aí é porque faltava o papel.

queria muito agarrar-te nas coxas
porque sou preguiçoso e leviano,
vou apertar ali ali, hihihi
você não vai gostar, mas e daí
é tudo nas coxas e eu não estou dando a mínima.

(como era mesmo aquela história
de que o primeiro rei de Atenas
nasceu daquilo que o Manco
estava ejaculando nas coxas?)

escrevendo a duas mãos

as canetas melodiosas rabiscavam
páginas e páginas e páginas
nossa, 'quele tempo das pilhas de papel empoeirado
eu espirrava contente: e o vento fazia até barulhos
quase bonito as folhas rodando no céu.

que seria 'screver a duas mãos
'queles tempos em que só uma guiava tudo
e quase estávamos é nos esticando inteiros
redebruçados corcundas, tortos na escrivaninha
o braço inútil, o outro esticado e apalpando:
entrar no papel por uma frestinha que abríssemos
com tal caneta cortante, cravada furando
até sair querida tinta-sangue da folha..

e hoje, tão fácil, tão veloz
quase saem-me letras é de todos os dedos
escrever a duas mãos? escrevo a dez!
dez dedos apontando letras como numa feira
"vou levar esta aqui, redondinha" "a madura ali, por favor"
sambando harmoniosos e muitas notas descompostas
rebatucando trac-trac-trac as teclas leves
infinitando a textura táctil das palavras doces
que se nos saem escorridas aos borbotões
dessa tal máquina-escriturante tão modernosa
plec-plec-plic os sons gorjeantes percussionistas
um plique-plaque muito mais musiciano
do que as arranhadas ásperas dos passados tintureiros.
muito mais: de ritmo e bom som.

deviam pôr debaixo dos botões redigidores
sininhos ou fadinhas miúdas enroladinhas
a gritar e gemer a cada pressão - ia ser bonito de escrever!

ía

já odeio este título gigante aí flutuando
anarquía sou, já quis tanto mudá-lo
mas muito o sem-nome precisa chamar-se algo
e este algo findou sendo simples: o anarquía
resmungo apenas, então:
que este señor anarquizado
é uma mentira de pernas gordas
porque possui acento no i
porque é só uma palavra
porque é do gênero errado
porque me faz bem.

foi aqui que tudo acontece

(tema para uma vanguarda sem nome)

éramos dois: mas éramos tantos!
bebíamos vinho e líamos baudelaire
quanto não rimos dos outros, hein?
quanto não... acabou.

éramos dois: mas éramos um!
inventávamos muito, sozinhos e fáceis
impressionávamos: grande profusão
construímos poderosos castelos de.. cartas.

éramos dois: éramos zeros
velhos desculpando-se e coçando-se tudo
se aos vinte o rimbaud nem morria mais
nós só cuspíamos fumaça e praguejos secos..

éramos dois: dois estranhos
quando com tempo vazamos olheiras
e não soubemos mais ser dois de novo
o aqui afundando longe, cadê?

éramos dois: não éramos
personagens de personagens de personagens
as paredes apagadas provando
que nada vingava, e tudo era ido

éramos dois: éramos.
quando chegar ao fim
as águas vão tomar tudo
e as avós levarão o resto.

Jam session


quão adoroso estar-se em meio a uns tantos ditos musicistas
    tão doído neste desacordo, desarmonioso
amando tonto a espécie inocente de belicismo blasfemo,
    quando cada um quer sempre transbordar nos outros
  invadir-lhes a melodia água com mil notas úmidas, erradas
  enfogueando muito a quase calor, e derretem nuvem;
mas os ouvidos afogando sob a torrente de vapores sons
  quase sabendo se gritar é minúsculo (e, portanto, sempre)
envolvido nas marés infinitas de tempestade e destruição
    neste país chamado olho de furacão, olho lindo de plenitude;

o coração gosta aí a gastar-se bonitamente, linguajeando
    pois que ama-se infiltrado, enxertado voyeurista,
  metido pés nas mãos, acoplado a esta máquina impossível
esta máquina primitiva da criação exagerada rítmica
    composta muita de mil peças primas, lembrando locomotivas
em que os instrumentos cuspem rodas dentadas mágicas,
  zumbindo um motor de vapor e fogo tossidas,
    escoiceando soluços gagos de fumaça eco, ressoante;

nesta terra mora então o tal tanto desprendimento nu:
  que as brisas marinhíssimas do improvisismo sábio
    nos 'rancam vestes e telhados sustos
  limpando-nos as gargantas desafinadas de sussurro
    para sairmos divagueando vagos e múltiplos
      todos impossíveis surdos e inconfusos
    no meio da balbúrdia e do marulho, ali sim:
  no excessivismo cantado, neste nascer fecundo,
reinará algo
chamar-se-á música
espelhará novo
bonitará som.

barthes queria voltar ao diário,
proust... é tão quase; (e tão outro!)
essa vontade de sentir-se literário:
espalhar tintas de sentido nas camadas de vida

(ora naquela coxa falta vermelho-amor;
aqueles prédios estão entediados e beges demais;
enquanto naqueles olhos, tão desbotados de lágrimas,
esfrego mais uma camada de azul-marinho-oceano:
e serão os olhos mais aquáticos da minha pintura-lembrança)

escrever ordenhando as canetas: ordenhar a linguagem
leite-néctar de imortalidade, a ser misturado
espalhado em pequenos montes nas palhetas
para pintar o mundo de cor-sabor-memória

(se recusar alimentar os bebês gordos
chamados pelas suas mamães-tantas
"quem é o clichêzinho mais bonito?"
que essas bocas infantis tão edipianas
já não conseguem sugar quase leite algum
e se engasgam em si mesmas: arrotando.)

resolver-se a beber o próprio leite
dobrando em si mesmo: oróboro
o curto-circuito de amamentando as tetas
fazer as canetas se virarem sobre si nas camas,
fugindo de si, em vômitos de círculo:
fugindo-viajando para os longes.
planejar escrita é planejar:
amanhã acordarei sorrindo,
semana que vem sonharei com porcos;
é bem ridículo dizer issos aí.

ouvi dizer que forçar o sorrir de lábios
quando os olhos mais querem é irritar-se
e a boca contorce-se em desagrado:
se quem sabe pusermo-nos em felicidade
- falsamente, como sempre -
o sorriso tatua-se profundo na nossa pele
adentrando os poros e as rugas de enfado
até que já vamos nós sorrindo sem querer
e, felizes, sem saber quê;

talvez sorrir quando escreve
mude aquelas coisas que saem da nossa mão
muito mais do que planos de antemão;
então amanhã, acordar e sorrir de propósito
congratular-se da vida inventada;
e no sonho da semana que vem,
dizer faceiro: aquela sua mãe que apareceu lá
e todos aqueles estúpidos homens-maus que eu pensava ter visto
não passavam dum bando de suínos.

rima

me vêm umas taras rimativas,
que me querem ritmo e compasso;
- minhas mãos se revoltam vivas,
não sei o porquê daquilo que faço.

engasgo, tusso, asco,
isso vai ser um grande fiasco;
mas me recuso a esconder,
eu vou rimar, vou aprender:



se rimbaud rima
rimo também
minha obra-prima
não soa bem

(aplausos)

poesia e verso: vou rimar
e só não posso rimar com ar:
ar vem trazendo de antemão
os acessórios da expiração
ventos, sopros, brisas
aéreas planícies indivisas

ar possui o som perverso
que inspiração, é a mentira
entra nos meus pulmões de verso
e rima com não! respira-expira

rimar com não é denegrir
rimar com verbo é ruir
infinitivo é fácil ver
que forma rimas de sofrer

quero uma rima muito nova
rima essa que dê sova
nas crianças do balanço
nas velhinhas cheias de ranço
no poeta morto enterrado
(rimar com ado é retardado)
nos versos cinzas de outrora
na minha cara feia e vermelha
que se espreme de dúvida e cora,
que se agasta de dúvida e espelha.

mas o sentido, onde fica,
nestas rimas descuidadas?
por que se muito tudo indica,
que estão todas perfuradas

queijo suíço, elas parecem
e o ar vagueia entre seus furos
rimando feio elas tecem
uns muros altos e escuros

rimar pra quê? já nem me lembro
eu nunca rimo, setembro-novembro!
não não não. mas eu cedo, cedo
- estou é morrendo de medo.

mas divertido, rimar a esmo
sem nem assunto, ficar falando
poema brusco, poema-mesmo
rima só serve a sair cantando
é adoroso escrever isto tão apático
ah, como dói, eu choro tanto com isso;
é mentira. estou bocejando.
ou, em verdade, reenrolando tempo de distração.
os mais sábios devem chegar, à noite, com suas luvas de aço:
agarrar as idéias pelo pescocinho, ir apertando, apertando,
"cospe!" eles berram "cospe!"
e mais tarde anotam em seus caderninhos os gemidos-falsos;
e se vão, sem nem pegar o telefone.
ordenham-nas só para dizer que trepam (em torturas)
quando nem lhes agarram as coxinhas, nem acariciam os cabelos
e as idéias órfãs, tadinhas
ficam tão desmilingüidas..!
queriam mordidinhas na nuca metafísica
e soprinhos nas orelhas de borda-de-conceito
deviam vir pra cá dançar comigo, beber umas,
que mais tarde estávamos já caindo nas farras e nos amassos
(elas são umas devassas, mesmo!)
li nalgum lugar: "medir o homem por sua sombra"
e o autor achava isso um escândalo (era-lhe só uma idéia).
enquanto eu, na minha insignificância anônima e sombria,
aponto essas bagunças como uma coisa bem gostosa.
ai, os brincares de ver formas contra a luz!
(se tiro as vestes, estou igual: se envelheço, parecido)
minhas sombras tão bonitas acompanham dia;
e noite, tão bonita, persegue sol - ou é o contrário?
quem estudasse esses pretos: não faria cosquinha?
algum dia perceberiam: é nas sombras em que moramos
e de lá (aqui!) fariam "tsc-tsc" com a cabeça
olhando para os tantos que só nos imaginam carnes sólidas de contra-luz, corpos frígidos de luz, de vida sob aquela luz cada vez mais quente até nos secar as salivas e findar as mil safadezas do escurinho.
"descobri que texto e tecido têm a mesma etimologia."
"como descobriu isso?"
"perguntei-lhes."
o maior elogio a um
nem tem nada a ver com belos ou incríveis:
"nossa, isso aí (seja o que for esse diabo)
haha, já me fez escrever tanto"

e o autor fica sem-graça
percebendo sua cria promíscua, cheia de amantes por aí
é o maior elogio, no fim
porque diz: amo-te porque me fazes amar-me

os outros talvez olhem com olhos desconfiados
meio-engraçado, meio ignorável
quando muito este affair oculto é o mais bonito

(muito mais do que os "já lhe repeti várias vezes"
"nunca cesso de abri-lo de novo"
vejam: muito mais esta exclamação zombeteira:
"já tive filhos com isso." não importa se nunca voltei a buscá-lo)
coloquem em suas listas de afazeres
pôr nos sons um algo bastante invasivo
gritar bastante (isto pouco fiz)
descobrir-se um dos muito instrumentos que se lá gemem
cerrar pálpebras: que a luz é muito frígida
e deixar-se navegar a esmo pelos calafrios de braile
que nos invadem o tato e os músculos
gostar tanto de ti que quase te ver como personagem
daquela fabulação-filme-livro-históriadeboteco que chamamos vida
sentir-te quase literário
quase - aquelas notas finais da melodia preferida
descobrir o parentesco gostoso entre essa tua carne
rabiscada de cicatrizes e dores
e todos aqueles tecidos compridos
mesmo véus que vão se caindo sobre ti qual lencóis
e meio que vamos nos afundando neles (um afundar para cima)
e são feitos de água semi-nuvem nublada
que se desfazem ao toque ajuntando-se à tua pele
e logo tu és um amontoado úmido de cores e panos
viva, amontoado úmido de cores e panos!
viva, amontoado úmido!
viva!

eu estava andando pela música e ouvindo o chão

andando de olhos fechados, como escrevo de olhos fechados agora
escrevendo de olhos fechados, andando de olhos fechados,
o fio da realidade me soando tão mais frágil, se requebrando todo
(quase parece aquelas folhas de árvore que se atiraram no vento
e ficaram presas num fio de teia de aranha: congeladas no ar)
tudos já se mesclando: e de 'onde estou' é tão bonito
(e não ver o que é escrito: é quase falar)
andar no tempo de olhos fechados

hoje eu corri
sem ver o mundo: cerrado nestes eu-mesmos
e normalmente assim passo contando os segundos e os passos
brincando chegar a um limite, manter a conta, medir..
mas não, dessa vez não; haha
abdiquei das réguas:
estava a música e ela se foi me tornando mais real do que o chão que me pisava os pés.
e logo minha pele ficou manchada de som em várias partes
e eu sabia que as matérias de que me fazia eram muito calafrios e arrepios rítmicos percorrendo os meus pêlos
e meus movimentos todos delineavam uns outros universos
que cada músculo se afinava instrumento
e a música ia saindo era do meu própro corpo:
estou incerto instrumento musical e gaguejo!
e nada dos meus passos estarem é caminhando pela rua,
contraindo carnes feitas de sólido, ah não:
os tais sólidos e frios me eram um bonito poema
a que escutava com minhas orelhas acústicas
lá das terras do aéreo e do sonoro
invertindo a relação, se me tornando ponta-cabeça
ruído enorme me invadindo as cabeças, como um exército
que é para metermo-nos a caminhar naquelas estradas
(ah, que nem consigo falar: estou mais preocupado em me dançar e espasmar do que no descrever; que diabos! haha)
ah, que mundo o quê!
minha tara é por algo de muito mais rápido
muito muito passageiro e de que nem se falam muito
aquela sensação assim-assado, aquele removimento:
imagine um voyeurismo apenas dos gestos de limpar os pés nas portas
a fixação pelas relações entre tossidas e timbres de voz
estudos maníacos das palavras entre-resmungadas pelas cozinheiras de boteco;
o meu talvez seja um tanto mais longe e vazio,
porque eu talvez esteja só me coçando, mecanicamente
e nem realmente ligue a nada disso: espreguiçando.
gosto de saber tantos músculos se contorcem nas carnes
quando as meninas e os meninos se fazem de bobos ingênuos
e, por uma simpatia qualquer, um sortilégio infantil,
ganham ganas de se esticar em prosa gostosa
porque sozinhos se expandam tão grandes
que já outro dia esbarram uns nos outros
e se gritam "ei sai daqui!" "ei isso era meu, devolve"
todo o palavreado de simples esvaziar a alma dumas coisas tão incômodas que se nos alimentam
os bebês precisavam de tapinhas nas costas para arrotar
as crianças saem fazendo campeonatos dessas besteiras
eu gosto é de saber como os outros põem para fora esta espécie de dor-de-barriga metafísica e preguiçosa
acho é tão bonito dizerem por aí
"ai, que me falta a inspiração!";
esse verbo gostoso que nos serve às artes e aos fôlegos.
quase me dizem: "ai, falta-me ar!"
delirando efeminados quase em desmaio.
estão ofegantes dalguma corrida de suas horas
ou mesmo asmáticos: quase nem respiram
sufocando no ar-mesmo que nos entorna, líqüido.
e seus prazos pesados, bolas de ferro,
lhes afundando num oceano de irrespiradas,
um oceano de poeiras velhas sugando-lhes o ar:
os prazos expirando, e expirando mais e mais,
já sem brisa nenhuma que lhes acorde.
quase se ouve o silvo triste do ar que escapa,
pelos furos largos nunca tapados - mas dói tanto!
chegar um dia em que expirem completos - o prazo final:
os alvéolos fechando a quaisquer instintos ávidos que se lhes acometam
sem inspirações: sem respirações: sem energia
os Seres da Expiração, das cuspidas e faltas de ar;
cambaleando expirantes e resfolegantes. inspirem!
se para gritar as idéias bonitas,
que lhes requiram as inspirações profundas, cheias,
então, ó vejam: era bom engolir mesmo o mundo!
embriagar os pulmões de vida!
gritar as almas que se nos entulham a fala;
um grito tão forte que invada as bocas dos outros
um grito que irrompa em respirações beijo-a-beijo
um grito de beijos e vida aérea.
o ar talvez seja feito de cheiros e sabores,
e o pulmão lingüístico só pulsaria belo nos discursos.
é tão simples:
gostamos de falar
blablablá blablabli blabló
pouco importa sobre o quê:
se é só para empilhar sorrisos
e esticar as línguas um pouquinho,
um minutinho, enquanto vomitamos sangue
mas se dói? ah, e se dói! ah, e daí?
tudo invenções em gostoso
saborear as respiradas
reviver os olhares
falar, falar, falar
um, dois, três
quanto discutem inverdades por aí
quanto se perdem nas mastigações
rerruminando esgares de nojo.
olha: só possuo um feito.
as suas raivas; os seus medos;
mandaria-os todos ao espaço.
não se gastem em minhas fendas tristes
que é escuro: façam fogueiras
gosto de ser combustível: vim arder!
aquela habilidade infinda
de evaporar em sons mascavos
revirando os olhinhos da molecada.
lambam os beiços, vou lambê-los todos!
vamos atear fogo às roupas uns dos outros,
e rir.
as crianças me ouviam estiradas pelo assoalho
e eu reverberava em suas almas, tentando sair
elas ouviam tantas vezes, mas tantas
e eu gritando: levantem-se e me incarnem!
quantas crianças me abraçaram de olhos abertos
quantas crianças agarraram minhas lágrimas perdidas
quando tudo mais era só chorar comigo
fechar as pálpebras: e sonhar junto.
faca, queijo, pão
estão a conversar, sobre seus dias
"não me decido, imortal
cortar gargantas, passar manteiga
escravizaria mundos! haha
mas só espreito: enferrujo"
"eu alimento! mas inda assim
sofro apodrecer milhão
rimo beijo, limpo rato
meus buracos escondem vento e desrazão"
"sou carne divina, sou sustento
sou não: sou mão: sou cão
me partir dá tanto som:
sou música, desjejum, então?"
faca, queijo, pão
venham cá, e juntos
tes farei misturas múltiplas
faca, queijo, pão
morte, beijo, não
podemos juntos construir
seja o que for.
se você soubesse
o quanto preciso de você
o quanto me falta: tu, infinitamente
e minhas palavras soam vagas e lentas
sem ti: sou tão teu, minha vida
teus risos são o mais perfeito combustível
dos meus ais. sonha comigo!
me desmonta! ah, aparece,
desembaraça meus cabelos
estou tão descabelado..
vem cá me coçar estas páginas
de mansinho. sou pouco: sim sei
mas inda assim; cá vim!
coça minhas entrelinhas gostosas de mentira
e finge navegar as soltas que não tenho:
sou sozinho, ah mentira. mas vem!
que no fim iremos juntos reclamar tudo
e será mais gostoso infelizar a dois.
não desiste destes poucos parágrafos inventados
te gosto: resiste! te beijo escondido
lê mais o resto, que desimporta
se soubesses o quanto me satisfazem teus insultos!
como-os ávidamente, no café, antes de dormir.

convite

já não sei bem dessas de fim-em-si
escrevinhações... eu as tomo como meio
sua direção estaria em chamar os leitores a perto
convites: escrever convites
convites para uma certa festa que daremos juntos
em que escreveremos as grandes literaturas
(que nada passem de convites aos deuses)

- pois então: quem se voluntaria?
daquelas angústias; faltas de rumos
que caminhos novos estas letras me abrem?
não se sabe. por que isto? por que isto?

há algos que devem ser mais alardeados por aí:
as escritas precisam sair do papel branco;
que saídas encontrem, que saídas inventem
a escrita para sair da vida de papel branco
(a vida de branco)
(a vida em branco)
não basta escrever na vida,
pegar sua caneta e ficar desenhando no ar até que o vento leve:
esta escrita precisa sair do ar e entrar nas paredes,
precisa sair dos bloquinhos e seguir braços adentro
escrever nas linhas mas também nos sangues e sons
de forma que as próprias palavras ditas estejam pichadas, rabiscadas, fragmentadas:
o mais importante das canetas-tinteiro é as manchas na mesa,
os respingos nas roupas e nos dedos,
que denunciam: inventei.
auto-invenção, auto-construção,
auto-fabricação de corpos novos todos rasgados em imagens
imagine aquele dia em que você veja alguém sem nome lhe perguntando 'que horas são'
e note, gritante, nos trejeitos de suas sílabas,
no escoar da língua entre os dentes,
no próprio matraquear das idéias nas orelhas:
toda aquela multidão de falas tentando porque tentando sair;
uma horda de impossíveis revoltas às horas e ao são,
uma vibração de incomum: um 'que horas são' que se ponha de pernas pro ar: para sempre.

obrigar a fala do escritor a rebentar
obrigar suas letras a afogarem seus olhos
que ele não consiga mais ver o mundo igual:
que isto aqui tudo tenha algum sentido (por favor)
que não sejam floreios, ah! que não sejam floreios!
que não sejam poemetos de jornal,
embelezamentos fáceis de uma vida imóvel, conformada:
que seja sísmico; que seja tectônico;
que trema lá nos fundos dos refundos das almas
que se desagüem em novas formas de respirar
que as letras saiam da página, que escorram livres
que saiam de mim: que entrem em mim: que soem.
escrita escrita ita es crita escrita
esgrita grita escrita grita es crita
irrita a escrita irrita escrita a rita
escrita rita rito escrita escrito
esgrito mito minto escrito crita emito
irrita tinta rito extinto
trinta extinta tinta rito mito
escrito ita escrito inscrita
escrita imita o mito escrita ita limito
esgrita escri grita esgrima esgrima
esgrita es grita escrita escri es
cria ex cria crio escrita cria
rio escrita ria da cria lia rio ria rita
escrita cria rio lia escrita
escrita ria reta creta
excreta creta dis-creta diz creta
creta ria escrita reta
escrita reta veta via creta
escrita meta excreta
metaescrita da escrita reta reta
escri ta reta escri-crita reta
es crita grita esgrime rita crime reta
excreta escrime prime rima reta
esperta imprime prima ex creta
exprima rima esperma perma
escrita vita rima esperma
escrita crime exprime merda
exprime crita escrita impri
mescri ta cricri
escri- cri - escricri cri escricri
escricristo cristo
escri cristo excreta
cristo grita escrita veta
escri ta es criba escreva
escriva escrita viva
escravo cravo escravo criva
cravo cribo cabo encabo encravo
encapo escrita capo
escrita capa o escravo vivo alvo
escrita calpo escalpo escalpo
mesquita equita esculpe escrita culpe quita
escrita esquiva
escavo escravo criva rato
escrita ato es scrita salto alto
escrita cita salto ita ita
escrita cata quita o alvo salvo
escri va bica cava es calpo
escrita ita escri te escrito alvo escarro carro
escravo carro escarro esbarro
escravo viva vivo
escravo escrita
escrava
escrava
viva




a anarquia está refluindo

bastava deixá-la a si mesma,
suas memórias-mesmas repetinindo estilo
que iam-se perdendo em resmungos e rascunhatos
as duríssimas liberalidades de folha-de-papel-em-branco.

oh! infindável limpar as folhas de suas manchas!
se logo crescendo fungos pelas bordas,
as folhas tão manchadas de bege;

abrir terreno! explodir as velhas linhas negras circulares
velhas linhas grossas, pretas, resistentes
que me soam cordas e correntes atando os desejos de escrita:
tanto cabelos negros que me entopem os ralos,
impedindo os escoamentos, os deslizes, os rios.

eu nasci em um grande campo negro
regido pela Lei do círculo:
palavra circular, palavra-espelho, palavrarvalap.
e se por tal mesmo nunca proliferei,
encolhido por esse vômito de pronúncia;
se então atirei o escuro por longe - resolvi começar-me um nada
escrever um nada e deixar aflorarem muitos os pequenos vícios encolhidos;

mas ainda o lugar onde se escreve é como jardim:
e logo as livres mudas palrando novas de raríssimas
nunca dantes vistas em suas formas e desleituras
inventam a dominar-se regovernadas! e já sufocam;

uma escrita grande desmatar, desconstruir, desfazer, deslocar, desgovernar,
tudo a grande limpeza de tudos aquilos lânguidos que façam tamanha força por marcarem-se em papel;
tudo libertar os pequenos, os menores, os infinitos:
que meio vão-se em surgindo acidentalmente
e pelos cantos, pelos desinteresses, pelos vazios;
espontâneos: tão infinitos

grande motor da anarquia a mira na destruição, iconoclastia.
pois se construir, se dá no não-visado, só se dá no não-olhando;
escrito, ex-grito,
encarnando esse subterfúgio de apontar tudo alvos que rasgar,
inimigos que romper, que deixar;
largar as letras sós borbulhando em não regidas por grandes Leis
garanti-las dispostas em certas arquiteturas,
lhes interrompendo as fugas fáceis àqueles tão enfadonhos,
tão chamados lugares-comuns, de maus-hálitos
deixá-las soltas assim: esquecidas,
que por aí revolvam suas novidades de se ser.
não me venhas irritar com teus lugares-comuns
'ah pois que tu escreves sem sentidos'
vão-te à merda
livros
livres
libras
lábios
ivres (toujours ivres!)

lombrigas.
entortear palavras possui se muito tanto dum ritmo gostoso de sem-conteúdo
lhe nem chamo de floreio: que nem possui haste a se guiar;
bando de desmesuras engrandecendo mil nadas
só sorrisos letrados, sons impronunciados se escorregando entre os dentes:
meio quanto sem-sentidos: perdendo os sentidos: desmaiando
bolhetas de ar fluido repassando entre os palavreados
entre tantas engrenagens de incomunicação
que lhas façam girar sem rangidos
com rangidos
som bonito dos pliqueplaques da linguagem ressoando as rodas lentas de sua velha carruagem de mentiras, até despencar do penhasco bonitamente, naquele vôo veloz dos pássaros atirando-se às mortes improváveis do pouso fim.
se um mês sem escrita
não tenho desculpas
se me liberto em fragmentos
me permitem agüentar mesmo os ritmos tão ralos
inda assim m'escondo!
falseio.
tropeço. indigno!
revolto:
volto a screver aqüi.
andar de olhos fechados pelas ruas
sempre conto vinte passos e não agüento
às vezes pouco mais, quando uma parede que me guiar
mas muito tanto dez ou quinze,
se atravessar a rua, obstáculos, perigos
mesmo cinco! ou três!
extrair o máximo de silêncio dos olhos
caminhando em sonhos,
largar-se nos mundos oníricos:
deixar os olhos para o que lhes valha a pena.
tornear as escadas e travessas
se de tão soterradas em vislumbres repetitidos
já são muito engodo afagando lentas as imudanças:
lançá-las ao espaço:
ao longe
ganhar todas as aventuras de um andar cego maravilhoso.
se escrever como quem sonha.
lembro duns sonhos tão fortes,
tão maravilhosamente belos,
sonhar para descarregar potências artísticas do céu dos olhos fechados.
não me perguntem por quê.
eu nunca sei.
só um passageiro na minha vida;
invento mil e um destinos do motorista,
querem ouvir essas mentiras?
eu mesmo já sou surdo a elas.
só, sigo em frente.

acho essas incertezas quão promíscuas,
pois se obrigam pensar;
se deveriam obrigar pensar;
se tão leves, tão esquecidas, tão escondidas
a pena darem tantas angústias conformadas e compridas.
há todo um sentido especial no sair para comprar cigarros;
mesmo que raro seja assim,
sinto-me sempre de chinelo de dedo,
barba mal-feita, como recém-acordado às quatro da tarde;
bocejando e divagando enquanto realizo aquilo de tão hábito que é ir à esquina;
arranjar uma desculpa ingênua para esticar as pernas,
e depois ficar fumando bobagens,
tudo só de matando alguns minutos.
meio que é das poucas cenas que envolvem atmosferas de calor,
as roupas brancas, largas, soltas,
brasil.
pergunto muitas vezes se é honesto,
asco dos elogios floreados - se soam falsos, excessivos;
e inda assim o que me sai dos dedos não sei definir,
talvez também eu peque,
talvez seja outro hipócrita,
talvez nada disso valha a pena;
eu gostaria de aprender a dançar com quadros;
entraria no museu e me poria aos passos longos,
calmamente deliciando nos aires me roçando os membros,
e sentiria as imagens tatuando-se leves na minha pele.

acho que todos os pintores estão dançando enquanto pintam,
mesmo que nem percebam.

(aliás conheço artistas demais que não percebem
ficam dançando rígidos
não aproveitando as musicalidades do roçar dos pincéis
engolindo a dança

devem depois de cada quadro ir ao banheiro livrar-se de tanta balbúrdia)
escrita que faça o leitor pôr-se a dançar

como dar uma festa através da página? carta que seja literalmente convite à dança, literalmente convite - seja a própria festa ali - e você entre na página e ponha-se também em sinais a passear pelo papel em sua ginga safa, recolhendo verbos e adjetivos, num grande jogo de cartas e você é um coringa construindo castelos delas, ganhando tantas liberdades em seu frankenstein de movimentos escritos, sua quimera de tentáculos por todas as folhas, ah!

danem-se as potências outras das letras!
muito mais fazê-las entrar nas carnes, entrar nas artérias, pular no coração, espalhar-se por todos os sistemas nervosos em pulsos vibrantes, calibrando os cabelos, ondeando os pêlos, em ritmo, em ritmo,

alguns tentam transmitir sua festa como se a escrita fosse uma janela transparente;
mas por que não chamar as próprias folhas à festa?
melhor, dar a festa nelas, juntar-se a elas nestas folias, haha;

tudo que posso fazer é escrever dançando e chamar à dança as palavras
se as palavras estão dançando, ora talvez elas só saibam dançar sozinhas,
e estão se balançando tão gostosamente, sinta o suingue da grafia!
ao vê-las dançar alguns ficam com vontade de pôr-se a balançar também,
e, na livraria, os surdos-mudos vão dar o maior baile, vocês vão todos perder;

uma vez escrevendo comecei a dançar na cadeira - pela música das minhas próprias palavras!
sabe o que é pôr-se a fazer o corpo também dizer letras?
fazer os braços esticados, e depois n'outra posição, noutro signo,
e quem se puser a ler o braile mágico da carne vai poder perceber a continuidade entre o lido e o dançado

braile baile braile baile
braile anagrama de bailer
aile em francês, asa
b-aile-r: asar-se
bailar: dar asas a si


acho não existe melhor expressão para uma boa obra musical que escrever dançando;
escrever-dançando
dancescrita
escridança

gosto de saber não são simples as letras se divertindo,
mas também as imagens a que remetem,
que ficam remexendo-se inconstantes,
carnaval conceitual de pares em tango;

assistir aos outros dançarem nos faz querer dançar também - não é o objetivo de tudo?

e não, não me venham com a poesia cantada dos gregos velhos e mortos,
não, ha! não me venham com os sons dessas palavras achar que eles têm ritmo;
ah! não comecem essas histórias de poesia cantada, ah, vão à merda!
sintam os conceitos girarem! sintam as músicas das imagens!
parem com essas interpretações superficiais do som e captem suas vantagens lá nos arrebaldes de sua essência;

manifestos, manifestos,
por que os manifestos são todos cantados?
os oradores põem-se a gritar seus refrões pelos becos;

talvez um jorro de imagens monotônicas também faça os ouvintes arrepiarem
às vezes me irritam as palavras prostitutas


tantos "talvez" e "às vezes"
estômago vazio torna-se caixa de ressonância de sentimentos,
os afetos ecoam e multiplicam-se
fomes e mudanças de equilíbrios químicos


disse o burguesinho que nunca passou fome na vida e acha arte pela arte super revolucionário enquanto suporta a vida igual aos outros; quase mesmo de tantas autocríticas cínicas nunca reage.
receita para poema :

trajes incomuns, por exemplo nu
por volta das 3 da manhã, nem que debaixo dos lençóis
sons escuros atravessando o crânio (vale zunido de pensamentos elétricos)
estômago quase vazio
às vezes álcool para euforia
cigarros para extravasar,
solidão,
ter acabado de gastar energia em algo estúpido
vontades de lembrar sabores à vida

deixar insone ligado a algum aparato de escrever mentiras até esgotar.
reescrituras a gosto.
amaria escrever na velocidade do que falo, melhor, do que penso.
dane-se tudo aquilo que já disse sobre as canetas,
sobre as teclas do teclado e como expressar tudo-tudo passa pelos dedos com suas extensões de tinta;
aqueles devaneios tortos de que minhas palmas das mãos possuem a arte,
ah não,
tudo grandes mentiras;
queria mil-mais ah mil-mais-um ficar cantando minhas recitações,
ficar fazendo e desfazendo poesias com a Língua!
minha língua rainha da escrita faria a literatura veloz da fala
que em vez de tinta, jorraria saliva
em vez de manchas, beijos
se os biólogos chamam vida àquilo que se reproduz,
então para ser viva, arte precisa engravidar os leitores
(dane-se que seus filhos não se lhe assemelhem em nada,
o que importa é seu desejo irrefreável de fornicação)

se inspiração é um nome bonito para as mais devassas orgias metafísicas

os princípios categóricos e toda a patota de semi-deuses lógicos põem-se a tomar tantos porres e se entre-cruzar uns cos outros, resultando em ressacas de, no dia seguinte, ninguém mais saber quem era dono de quê, quem cometera o quê, para horror dos proprietários e suas grandes listas de nomes; além de os beberrões pôrem-se a abrir os armários mais velhos e lacrados, revirar todas as montanhas de lixo do quarto; bom de festa que muda os casais e as rixas, multiplicando e reciclando as possibilidades de fofoca.
talvez aquilo que irrita tanto a possibilidade de entender o que se passa aqui, agora,
seja de que muito penso nas canetas;
canetas as grandes máquinas de poesia da vida moderna,
e elas querem ficar tontas no papel, deixando rastros quaisquer em seu passo embriagado,
e todos os leitores não sejam mais do que isso: ficam apreciando os resíduos de uma grande bebedeira.

imagino tão fácil, as canetas voltando de suas noitadas e encontrando a manada de corvos a medir e calcular suas letras borbotoadas pelo caminho; e ela urgindo: não não, deixem disso! vamos beber; ora se derramei bebida por todo lado, então deve ter o suficiente pra continuar a festa nalgum canto destes, e beberemos essas gotas felizes!
viva então a intermitente anarquia literária!
que permite aos fluxos virtuais de embriaguez sua atualização, sua corporificação, sua encarnação tão necessária!

se ler é gritar

um grande título, não?

ora tão poderoso, apontando uma digressão curiosa, pedindo mistérios;
leva-nos a expectativas de um quê de escalas algo requintadas..

pois bem, vou contar o grande segredo: este título impediu seu texto de sair.
melhor, este título matou seu texto. sim! que é perigoso dar títulos;
em verdade, é muito perigoso dar mesmo nomes às coisas.
desde há muito venho percebendo uma característica profunda, sutil,
que passa pelas entranhas do denominar, em todas as suas pompas cognitivas;
oh! isto se chamará Y, ah! aquilo outro agora será X;
e os belos dicionários tão bem encadernados, capas de couro, e páginas finas de qualidade, com fontes bonitas, cheiros agradáveis;
que mal sabem tolos: dicionários são muito instrumentos diabólicos de uma vontade de sabe-se o quê,
longas listas de nomes, meus caros! não percebem?
se quando proclama o léxico: tal objeto se caracteriza por tais e tais atributos, move-se de tal forma, tem tais cores;
muito diz: tal objeto cometeu tais e tais crimes! tal objeto deve portar-se assim; se encontrarem-no doutras formas destruam-no! prendam-no! tal objeto não deve jamais sair dali!
ah! nomes ferramentas da não-liberdade!
títulos que aprisionam as palavras nelas mesmas, não, não,
prefirível nem dizer então.
jamais dar títulos - uma postura válida;
se todos os títulos mentirosos, tentando roubar a si suas glórias e reinar na página;
daí aliená-los, pô-los sem conexão com os súditos, torná-los algo como texto à parte mas paralelo, brincar com as mil possibilidades de suas relações políticas, recusando a mania monárquica que lhes vem tão naturalmente.

se ler é gritar

se ler é gritar
é estranho então sabermos que


veja bem: quando abrimos um livro - melhor, quando nos pomos a decifrar as primeiríssimas letras d’umas frases quaisquer -

ali naquelas cabeças profundas que temos
desde cedo plantaram, na balbúrdia dos anos infantes,
meia dúzia de léxicos e dicionários,
e que regados a sintaxes novas aprendemos o instrumental hábil a tornar-se consciente
- este somos nós,
o eu-floresta resultado da progressiva evolução daquela mata selvagem de palavras:

pois bem, então quando nos pomos a engolir uma literatura,
essa expressão é na verdade muito errada,
pois que o que acontece mesmo é o eu interno abrir sua imensíssima biblioteca virtual de todos os livros possíveis (que foi construída num quartinho chamado “abstração”) e ir procurar no índice geral (que tem na sua capa grossa de couro escrito “pensamento”) aquilo que corresponde às palavras vistas pelos olhos-nariz-boca-orelhas;
e então conforme na leitura vai publicando e imprimindo páginas soltas daquela peça,
e o que se lhe resta é um agregado de fascículos não de modo algum perfeitamente idênticos ao que foi lido,
porque a bagunça-vida da mente está constantemente assediada por ventos e tempestades,
mesmo porque também o ar quente às vezes carregado põe-se a decompor páginas,
e perdem-se muitas coisas; o que fica deve ter brotado fundo,
porque no entre-ouvidos em festa sempre a ser assediado por trovões e bebedeiras de pensamentos narcóticos do dia-a-dia, as obras se perdem.

que palavras são o chão e as estruturas de pensamento as árvores e o dia-a-dia se nos dá água (ou não, e talvez mate as plantas)
[já estou retomando aquela divagação daquele ‘tangente’, mas e daí]

[gostava mais enveredar pelas noções da biblioteca de tudo, de shakespeare, de borges]
das artes boas que sejam simples estruturas de ritmo,
e início em suas velocidades calmas, fáceis,
a recolher os mínimos pingos de alma espalhados pela preguiça,
atrair atenção mesmo das mais velhas e duras;
e pô-las todas no trem:
o início um capitão que manda todos entrarem e prestarem culto,
prepararem-se com cintos de segurança (e sem saídas de emergência) para a viagem que então começa;
a metáfora muito feliz da locomotiva saindo da estação (cafécompãocafécompão)
em sua batida rítmica acelerativa (mas inda um tanto caótica)
em seu martelar que lembra tanto o pulsar das metralhadoras e das máquinas de escrever.
ENTREM TODOS! e arte então um impulso avassalador,
daquelas avalanches monstruosas que se nos fazem pôr-nos a correr,
em pânico,
em prazer,
em sem-sentimentos - pura velocidade.

fragmento ilegível qualquer

[... como achar-te - eis a questão!
(quando se sabe que 'eis' em grego é a direção)
ser ou não ser para a questão; um ser-para-questão ou não.

embaralhamento de palavras enquanto tudo que gosto é transbordar termos em folhas gordas para me divertir dançando com os dedos no teclado! porque só há duas apreciações possíveis da música, que dançar (ai a dança é das melhores) e que escrever; ah escrever por simples balanço de dedos numas teclas quaisquer, conectar imagens como quem tem cola-tudo e quer criar daqueles móbiles enooormes que flutuam acima dos pensamentos dos bebês em seus berços quando tentam dormir cobertos pelos seus édipos mal-formados.
[...]
pausa para gesticular horrivelmente, porque simples martelar pensamentos não abarca a necessidade de coração acelerado que se me toma nestas notas lindas de aceleração.

a storm is coming ...]
ah mundo!
todos sabem o único meio de gastar vida é buscar aquela menina-fada,
ah, inspiração! onde andas querida?
alimenta minha barriga ávida por sentir-se plena de idéias,
que me adianta liberdades se não te possuo, se não te amo;
oh, que tudo faço em busca de ti, e é verdade,
mas se não sei quem és, ai de mim! quem és?
que és e como achar-te - eis a questão!
me perguntam por que desperdiço tempo revirando latas de lixo,
errando pelas ruas, me desmentindo;
mas se inda nem sei como não desperdiçá-lo!

eu gostava de dizer 'se eu fosse poema' em vez de poeta;

minhas idéias daqueles seres mágicos que todos devíamos tentar-ser em nossas mentiras que mudam o mundo; que um dia chamados elfos em seu flanar pelas ruas anárquico; ora talvez muito a ver com as mulheres que exclamam:
"mas então se eu fosse música"
que a arte das musicistas consiste muito também nelas mesmas,
ah bonitas! ah inspiram!

'ler henry miller' literalmente, que em sua pele viva estão tatuadas letras de invenção; a idéia 'henry miller' também um objeto artístico; ah apreciável! ah inspira! havia uma arte bem gostosa (tão denunciada) naquele tal Dali, o performático.

então arte, aquele vírus que infecta os leitores obrigando-os a produzir também
foda-se quem você é, só me responda: quem você pode ser?

pensamento vivo! que só pensa nos futuros e nos viveres que porá em prática.

rio, do verbo rir, do verbo ir

vontade de ser a grande maré que virá.

ser força irresistível que se vem nos inclinando,
devagarinho, devagarzinho,
para um mesmo eixo;
Ser-se grande Linha reta,
uma vida inteira simples traço, linha da vida
ver a si um fio negro unidimensional;
o grande canteiro de obras de uma ponte, de uma auto-estrada;
Outro dia abri o jornal e tinha uma dessas construções enormes,
daquelas avenidas lançadas ainda ao lugar-nenhum,
que se pegasse um carro, uma bicicleta,
ou simples saísse-me correndo feito barata,
e mirasse-me à frente, acelerar, acelerar, acelerar!
lançar-me-ia no vazio,
em meio ao espaço indefinido,
e minhas lágrimas, meus cabelos e meu cadáver
ser-se-iam em fundações para a próxima pilastra,
a próxima distância percorrida pela via,
o grande caminho,
a grande avenida humana, em vários sentidos.

quão bom não deve ser um rio enorme,
ser o amazonas extremamente gordo,
de uma risada de baleia azul, a maior de todas
que ao rir engole mil-e-uma almas minúsculas (e nem perceber que vive disso).
ser um fluxo caudaloso que atraia todos os outros a si;
que quando faz tempo de chuva de crianças novas,
todas essas gotas de sangue escarra-escorrem até as vias fluviais, artérias,
arrastando tudo em seu caminho em belas esculturas da erosão,
circulando a vida do mundo e pondo-a a gerar barulho; mas faltam rios!

quanto não deve fazer cosquinha engolir um milhão de pessoinhas,
fazer delas minha grande máquina de engolir as outras;
tanto melhor que haja esses monstros marinhos,
Leviatãs
(todas imagens que sempre nos remetem à água, seu poder de fusão e de torrente);
Muito melhor navegar o mundo em grandes naus bárbaras de conquista,
deixar os lençóis freáticos da cama para trás, e tempestear o mundo;
inaugurar a grande avenida revolucionária de vida!
que água parada trepa com mosquitos, pare mil sanguessugas irritantes;
prefiro deixá-la enlouquecida sem esse sexo de podridão,
atirá-la das montanhas altas para que coma ar e passe a parir som!

ah, grande ser-se em rio! e dar risadas que comam os outros -
onde estás?
grande eu-rio, ser de fluxo e de canibalismo;
eu-rio! onde estás? onde acabas?
eu-riodejaneiro! mês inteiro de risadas de baleia,
rio dos meses, Rio dos tempos; ah, grande eu-Rio do tempo!

inescapável prisão!
às vezes fico imaginando o quanto as fantasias sexuais do freud não influíram na psicanálise.
pensem bem: se o velhinho era ruim de cama (e ele era), quantos conselhos ruins não espalhou por aí?

Ix

outro dia estava pensando naquele filósofo (que foi tão influente em tudo):
seu nome era Ix.

muitos me diziam suas idéias belas e poderosas,
suas palavras mais verdadeiríssimas inusitadas, doces e mágicas, azul-arroxeadas,
que tudo dito jamais feito antes; era gênio, oh! arauto de novos tempos, sombra precedendo avalanches, dir-se-ia avant-garde!
e deixá-lo de lado só os mais velhos conservadores fariam,
e bla e bla-bla e blá.
e sendo eu um bom menino,
atento a fingir-me burguês e interessado em mudar o mundo,
localizei-o, e fui ouvi-lo falar.
estávamos então num seminário,
numa pequena cidade francesa, quem sabe
e várias personalidades disputavam o prestígio de derrotar seus adversários.
na época, estas eram ocasiões em que se forjavam correntes de pensamento,
venciam-se uns aos outros os intelectuais,
arena para assistirmos com pipoca os leões se atracando,
e podíamos pular lá dentro com eles.
tanto mais importante ouvir o tal demônio da moda:
presenciar feitos históricos,
dos quais leríamos depois nas antologias de textos canônicos,
e sorriríamos discordando e lançando a esmo aos alunos:
"ora, não foi bem assim;
lembro na época, ix pegara um resfriado..."
e por uma torrente de futilidades sem relação daríamos mais realidade àquele momento incompreensível, enquanto nele atrelávamos nossos nomes e corpos, de modo a partilhar de sua glória ante o mundo, tomando-nos por embaixadores daquela pequena data dita crucial, de que todos gostariam de ter tomado parte.
então estava eu sentado numa das fileiras mais ao fundo no anfiteatro,
e os grandes mestres sentados em suas poltronas preparavam-se para a luta,
que aí um dos mais aclamados vira-se ao nosso Ix e lança-lhe uma pergunta dificílima sobre um dos mais requintados artistas contemporâneos, tocam as três campainhas, apagam-se as luzes, e a Personalidade põe-se a falar.
é curioso, deste momento a diante só lembro lapsos de imagens,
acordava de vez em quando com os roncos dos vizinhos,
ou quando numa passagem bem divertida o técnico de som derrubou tudo;
sei que meu relógio estava quebrado, mas mesmo o som dos celulares apitando, ou quaisquer outras interferências bem-vindas não conseguiam afastar o torpor enorme que se nos apossara:
a voz de Ix;
um timbre,
uma maneira de concatenar frases,
um requinte especial de escolher seus ângulos de abordagem,
os exemplos que dava;
seus gestos na mesa;
suas pausas;
Não conheço viva alma que tenha conseguido ouvir por completo suas refutações revolucionárias.
sei que acreditei ter ouvido demasiado o suficiente,
e pus-me a citar Ix como exemplo a todos,
tomei parte em seu culto.
suas teses eram tão impossíveis quanto, e jamais as li.
conhecido meu, uma vez, deu-se à cachorra de trabalhar um pequeno ensaio da escola Ixista,
perdeu nisto boa parte de três anos,
sei que teve de interromper sua busca por falta de fundos,
por não conseguir nunca entender o maior pensador de todos,
por ser inábil.
eu mesmo dei vários cursos sobre Ix,
atribuía a ele as idéias que se me ocorriam as mais interessantes (jamais fui contestado),
e muito em breve os alunos me pediam a indicar leituras "legíveis",
e lhes escrevi livros de introdução ao Ixismo,
e criei minha corrente de interpretação ixista; não fui o único.
os congressos ixistas sempre foram extremamente incendiários,
e sempre os debates acalorados a qualquer tema de predileção ixista findavam a balançar as bases da vida mundana, e punham-se a ser vangloriados em todos os fóruns, e inspiravam movimentos e passeatas, e neles surgiam as lideranças do futuro.
quanto a Ix, o pobre tornou-se ídolo da geração;
não sei bem o que lhe aconteceu,
suas opiniões só me chegavam pela boca de outros;
então morreu recentemente, não sei bem se era velho;
em seu funeral acudiram milhares de fãs,
e dali marcamos o compromisso de nunca perdê-lo na memória, o grande mártir.
às vezes tenho impressão de a grande potência de Ix estar em sua maravilhosa manobra lógica, absolutamente indefensável: o sono.
gostas de festa? que pergunta.
não, eu prefiro os enterros.
beerdigung.
quem é o poeta louco?
o poeta revolucionário, poeta-elfo;
aquele cujo poder de fascinação é sem limites,
e ele sai a hipnotizar todos com suas palavras macias,
e todos querem sê-lo; e também os netos destes,
pois que o que nele encanta é a evidência de sua revolução?
quem é? ou quem seria - preciso saber,
porque quero ler este poeta!
sabe-se facilmente que a escrita abarca essa potência encantadora;
é lógico! é natural!
por que então não nos é dado imediatamente essas palavras fortes,
que nos farão saltar os cabelos:
a alta poesia dos que nos dão choques ao coração;
que nos faça viver! que nos faça viver!
queremos a poesia elétrica!
lênin disse: o comunismo é sovietes mais eletricidade
para fazer a revolução em nossos hábitos mortos,
esfregar essas camadas cinzas de fuligem acumulada no dia-a-dia,
e esquecer todos os minutos soníferos da vida,
precisamos abandonar as vidas velhas!
as vidas-mesmas!
as vidas-vidas, vidinhas;
ah,
precisamos de poetas que lancem seus poemas como granadas,
e todos gritem de felicidade com a explosão colorida que dali sai.
não! que somos jovens,
queremos festa,
e dane-se a hipocrisia dos que pensam muito, até sufocar.
façamos arte! (esteja lá onde estiver)
façamos irrealidades, pintemos o mundo;
não, não fiquemos loroteando a poesia dos que gostam de lambuzar o comum com temperos doces e agradáveis,
- odeio todos que se dizem poetas por dar nomes belos às mesmas coisas;
daremos nomes mesmos às outras coisas!
faremos poesia no embrulho dos fogos de artifício,
e choveremos fogo no céu estrelado,
desenhando constelações outras - para desespero dos astrólogos!
onde estão os poetas que quando lemos, saltamos da cadeira, em susto,
os poetas que começam seus poemas com um alfinete nas bundas,
e que os leitores gordos levantam-se e põem-se a pular de gemidos!
os poetas que leremos abrindo outra garrafa de vinho!
os poetas que recitaremos quando jogados na sarjeta,
e ficamos estirados sorrindo,
e nada existe no Tempo, e tudo é invenção.
bachelard estava certo
em procurar essências do pensamento filosófico profundo,
que se passa a nível de sonhos e associações livres (libertas!)
lá no ar;
em suas nuvens,
em seus sons,
que mais-aproximam-se de toda a experiência revolucionária.
imaginem só o prazer dos demônios,
que por onde passam deixam pegadas fumegantes,
olham para trás e vêem os tons fortes de vermelho e laranja,
e os tocos e restos ainda em chamas das casas de literatura dos velhos titãs.
e baudelaire um dia falou
aos altos brados em seu bordéu safado
com seu sotaque francês imperialista:

"il faut être toujours ivre!"


senhor charles
devo declarar-te
uma feita que m'atormenta as noites de boemia:

estamos sempre bêbados!
nous sommes déjà toujours ivres!
miller estava certo, do topo de seu moinho moedor de garrafas de cachaça.
ficar bêbado com água é mais barato, seu francês metido a capitalista

pelo potlatch revolucionário na escrita

bataille,
o homem com nome de guerra,
me avisou um dia, num bar, em que eu bebia:

"cale essa boca seu garoto maldito e estúpido!"

ao mesmo tempo em que enfiava uma faca em minha coxa,
e me puxava os cabelos até a lata de lixo mais próxima.




este aviso profundíssimo,
demorei anos a compreender.


bem,
que recentemente,
em meus passeios mancos pelo mundo,
descobri talvez uma hipótese interpretativa,
que enaltece o gênio do mais-sábio-de-todos
e justifica esse seu comportamento agradável,
como de um mestre que me provocou gordos ensinamentos
e aí vai ela:

"
viva dizer não ao escrever para acumular trocentas obras !
não aos que provocarem a avalanche bibliotecária,
das estantes gigantes com o mesmo nome em cada página;
que afogam os pesadelos ,
e deixam tranqüilo às noites,
impedindo os magníficos choros debaixo do lençol,
quando, enrodilhados, trincamos os dentes inconscientes!

não!
viva a escrita que se faz arquitetura de aviões de papel!
atirar bolas de literatura na cara dos transeuntes,
irritar-lhes os olhos com o vapor de tinta fervente:
guerra de letras!
escrita de gastar,
para construir uma montanha de livros - e queimá-los numa orgia descritiva!

escrever nas paredes!
escrever na areia da beira-mar - vou escrever a recherche inteira enquanto procuro tatuís!
escrita de pegadas a serem levadas pelo tempo;
e que se danem essas imortalidades acumulativas,
porque com mais de trinta segundos de tinta secando elas já são palavras velhas e conservadoras, inimigas da vida saltitante e irritante das canetas ágeis!

e dane-se o escrituramento-sustentável!
um nada de produção!
seremos inúteis - e abaixo o conceito de utilidade dos economistas tolos!

ah, e quando velhos,
com mil anos nos olhos,
olharemos para trás e veremos um enorme incêndio.
uma vida que seja um incêndio de páginas!
alguns querem olhar para trás e ver um tapete de folhas de papel, e enxergar o mundo em termos de papel, e adorar o papel-deus, que lhes permeia os olhos tornando o mundo inteiro texto; ah!
enquanto aquilo que nos dá fogo aos olhos,
e eu garanto, dá fogo às próprias idéias que nos conectam imagens mentais em seu samba literário;
é o incêndio!
escrita-incêndio!

a escola literária baseada na fumaça!
dos grandes escritores viciados em cigarros,
que só se sentem felizes fumando seus livros densos,
e em vez de tabaco fumaremos letras,
e seremos um bando de infinitos,
atirados a esmo pela superfície do globo,
enquanto este se auto-afunda,
numa grande desescrita miraculosa que fundará a nova bíblia e a nova era de desinvenção."
alguns me perguntaram uma vez
como diabos os pássaros vivem,
como os animais agüentam esse mundo,
se "não têm tv", é o que quase dizem;
e bem que sei que poderiam bem se referir
ao fato de saberem os animais passarem todos os dias iguais,
perambulando pelo esmo-a-esmo do sempre igual,
étrangers, dir-se-ia !
dizendo-se monotonamente:
'bom-dia-como-vai '
'bom-dia-mamãe-morreu '
e afins.

eu rio.
(pobres animaizinhos que habitam os zôo-lógicos destas cabeças!)

mas que então, nessas ocasiões de muito supérfluas,
respondo bravamente, com uma cimitarra bárbara em riste
(para a qualquer momento responder aos seus trejeitos cortando-lhes a cabeça) :

meus caros colegas, e amigos e dançarinos ,
convido-lhes a dissecar de perto as belas orelhas dos lobos e das águias,
e agora ponham-nas em seus pensamentos,
e escorram areias do tempo e os ventos de mil-mares em suas mentes.
que música irão ouvir?

nunca perceberam,
que ao sair nas ruas gélidas,
sentem os ventos roçando-lhes as extremidades,
tentando dizer-lhes uns algos ?
(que talvez indecências e obscenidades, pois que os ventos são grandes servos do dionísio)

se tivéssemos as antenas capazes de captar-lhes as freqüências melodiosas,
ouviríamos aquela rádio poderosa do reino animal,
que passa a tocar em brados absurdos,
e em gritos de horrificar as mais belas esfinges egípcias,
a música-vida, da qual todas as que conhecemos são primas libidinosas,
e que reverbera nos ínfimos nervos e fios de cabelo,
entortecendo a alma, fazendo-lhe uma massagem enforcativa,
masoquismo de mais alto grau.

e daí não nos espantaríamos mais com a apatia animal frente a tudo que lhes ocorre na carne:
pois que estão em transe musical-dionisíaco,
batendo seus corações em ritmo (e como batem os corações dos passarinhos)
em suas velocidades loucas,
saem a pulular os céus em sinfonias dissonantes;
são grandes artistas,
surdos às nossas ordens regadas a docinho e cubo de açúcar,
procurando as correntes de ar mais coloridas, mais saborosas, mais musicais

voar é como tocar numa orquestra,
porque o vento é um instrumento subtilíssimo,
de que todos nossos aparelhos musicais tentam laboriar,
mas que com asas poderíamos fazer-lhe dizer as mais coisas!
as mais coisas!
as mais-coisas!
as maiores potências filosóficas estão em meia-dúzia de balanços que se fazem nas palavras.
meia-dúzia de ovos a atirar nos velhos tarados empoeirados,
saindo de suas tocas-templos a caçar a juventude de gramáticas errantes,
de sintaxes errantes.

e que matem a filosofia dos velhos!
faremos um nada de dialética,
um nada de análises laboriosas infindáveis que só dão sono aos alunos bêbados;
deixemos aos computadores, com suas ágeis garras a invadir nossas mentes e tentar mecanicizar o pensamento
essas tarefas inglórias sem necessidade de nossos aparelhos de geração de inconstância,
nossa microfonia natural,
que pira o som constante dos bips e bip-lips das máquinas de comer idéias.

filosofia da grande caixa de som gigante,
que com seus urros graves,
estoira os vidros dos conceitos,
pondo mesmo a própria essência do pensamento - a balbúrdia!
a dançar (enquanto seus pulmões arrebentam)
texto-jorro!
porque adoro hifenizar o texto
já que sempre me surjem significados novos

entortar as letras - talvez seja um dos poucos caminhos para fazê-las dizer o que não querem
torturá-las: no velho sentido dos inquisitores, de colocar palavras em suas bocas
e submeto-as a torturas e choques e afogamentos,
vou pegar alicates e dobrar suas extremidades

sim!
pois que não me importa
nas minhas crenças gostosas (bem açucaradas, com gosto de guloseimas de padaria)
basta passar repicando a mente
é a maravilha da caneta liquidificador
o papel triturador de alimentos
enxertando a mil-realidade nas suas arestas não-depiladas
- fazer nascer os monstros de escrita!
que já hoje podemos nos divertir atirando por terra esta bíblia de senso comum enojante
olá? a unificação das palavras só irrita os pequenos usuários
- minha língua não foi feita para seguir a constituição!
este será um compêndio de avulsismos.

odeio cadernos porque jamais consigo começá-los
as primeiras páginas marcam um tema amplo
um tema poderoso

e guardo as seguintes para sua proliferação incrível
que sei que virá.

sou desconexo.
não vou escrever letras atrás de letras.
minha escrita funciona por acelerações
ela necessita esquentar - mas que é um mundo muito frio.



quando em borbotoar palavras aos montes
sem muito desenrolismo mas um certo tecer de idéias numa grande tapeçaria,

que daí talvez surja aquele ritmo
uma velocidade que organize as engrenagens mentais de certa maneira
alinhando os planetas internos
o panteão de personagens-fadas mitológicos que regem a sucessão de idéias mentais
planetas-deuses que passam girando em suas órbitas elípticas!
com seus nomes magníficos de netuno, júpiter e plutão
seus mares seus raios seus infernos;
os eixos de idéias rodeando a galáxia ego

somente a troca de tempos de algumas fases da vida
pode acelerar uns, frear outros,
aproximando-os,
a pôr suas gravidades em guerra,
desorbitando a realidade tosca
dando fim ao cosmos e ao sistema solar

adeus à astronomia!
incrível como as angústias de um amor platônico são tão mais poderosas
elas jorravam sempre nos momentos de fraqueza
e acabavam em muitas literaturas e poesias belas.

ser triste, naqueles tempos, era bom;
é difícil buscar essa infelicidade oculta;
a velha idéia de estar sempre embriagado - com um anestesiante, do algo horrível

que estas seguranças propagadas a esmo pelos becos
fazem mais é enrolar em seus cobertores quentes
e obrigar a dormir.
(quantas magias as crianças não fariam se seus pais não as afogassem na cama depois das dez)

o vazio criativo: era o que se tinha
a mera distância ocupada nada gera.
é uma longa fita métrica que nos assegura e prende.

texto-raiz (publicação póstuma em 21/09)

sim! eu me perco!
descrever é mergulhar em um mar líquido, um mar de líquidos labirínticos, feito de correntes duras como paredes, que guardam em seu fundo um minotauro.
quando eu sonho que vôo, eu nado. meu ar é feito de água, porque no sonho passo nadando.
se os gregos imaginavam seus deuses respirando éter, nadando em ar e andando em água;
eu respiro água, nado em pedra, ando em mim mesmo. sou uma planta!
sou pelo texto subterrâneo
texto-raiz, aprofundando em todas direções atrás de água