se escrever como quem sonha.
lembro duns sonhos tão fortes,
tão maravilhosamente belos,
sonhar para descarregar potências artísticas do céu dos olhos fechados.
não me perguntem por quê.
eu nunca sei.
só um passageiro na minha vida;
invento mil e um destinos do motorista,
querem ouvir essas mentiras?
eu mesmo já sou surdo a elas.
só, sigo em frente.

acho essas incertezas quão promíscuas,
pois se obrigam pensar;
se deveriam obrigar pensar;
se tão leves, tão esquecidas, tão escondidas
a pena darem tantas angústias conformadas e compridas.
há todo um sentido especial no sair para comprar cigarros;
mesmo que raro seja assim,
sinto-me sempre de chinelo de dedo,
barba mal-feita, como recém-acordado às quatro da tarde;
bocejando e divagando enquanto realizo aquilo de tão hábito que é ir à esquina;
arranjar uma desculpa ingênua para esticar as pernas,
e depois ficar fumando bobagens,
tudo só de matando alguns minutos.
meio que é das poucas cenas que envolvem atmosferas de calor,
as roupas brancas, largas, soltas,
brasil.
pergunto muitas vezes se é honesto,
asco dos elogios floreados - se soam falsos, excessivos;
e inda assim o que me sai dos dedos não sei definir,
talvez também eu peque,
talvez seja outro hipócrita,
talvez nada disso valha a pena;
eu gostaria de aprender a dançar com quadros;
entraria no museu e me poria aos passos longos,
calmamente deliciando nos aires me roçando os membros,
e sentiria as imagens tatuando-se leves na minha pele.

acho que todos os pintores estão dançando enquanto pintam,
mesmo que nem percebam.

(aliás conheço artistas demais que não percebem
ficam dançando rígidos
não aproveitando as musicalidades do roçar dos pincéis
engolindo a dança

devem depois de cada quadro ir ao banheiro livrar-se de tanta balbúrdia)
escrita que faça o leitor pôr-se a dançar

como dar uma festa através da página? carta que seja literalmente convite à dança, literalmente convite - seja a própria festa ali - e você entre na página e ponha-se também em sinais a passear pelo papel em sua ginga safa, recolhendo verbos e adjetivos, num grande jogo de cartas e você é um coringa construindo castelos delas, ganhando tantas liberdades em seu frankenstein de movimentos escritos, sua quimera de tentáculos por todas as folhas, ah!

danem-se as potências outras das letras!
muito mais fazê-las entrar nas carnes, entrar nas artérias, pular no coração, espalhar-se por todos os sistemas nervosos em pulsos vibrantes, calibrando os cabelos, ondeando os pêlos, em ritmo, em ritmo,

alguns tentam transmitir sua festa como se a escrita fosse uma janela transparente;
mas por que não chamar as próprias folhas à festa?
melhor, dar a festa nelas, juntar-se a elas nestas folias, haha;

tudo que posso fazer é escrever dançando e chamar à dança as palavras
se as palavras estão dançando, ora talvez elas só saibam dançar sozinhas,
e estão se balançando tão gostosamente, sinta o suingue da grafia!
ao vê-las dançar alguns ficam com vontade de pôr-se a balançar também,
e, na livraria, os surdos-mudos vão dar o maior baile, vocês vão todos perder;

uma vez escrevendo comecei a dançar na cadeira - pela música das minhas próprias palavras!
sabe o que é pôr-se a fazer o corpo também dizer letras?
fazer os braços esticados, e depois n'outra posição, noutro signo,
e quem se puser a ler o braile mágico da carne vai poder perceber a continuidade entre o lido e o dançado

braile baile braile baile
braile anagrama de bailer
aile em francês, asa
b-aile-r: asar-se
bailar: dar asas a si


acho não existe melhor expressão para uma boa obra musical que escrever dançando;
escrever-dançando
dancescrita
escridança

gosto de saber não são simples as letras se divertindo,
mas também as imagens a que remetem,
que ficam remexendo-se inconstantes,
carnaval conceitual de pares em tango;

assistir aos outros dançarem nos faz querer dançar também - não é o objetivo de tudo?

e não, não me venham com a poesia cantada dos gregos velhos e mortos,
não, ha! não me venham com os sons dessas palavras achar que eles têm ritmo;
ah! não comecem essas histórias de poesia cantada, ah, vão à merda!
sintam os conceitos girarem! sintam as músicas das imagens!
parem com essas interpretações superficiais do som e captem suas vantagens lá nos arrebaldes de sua essência;

manifestos, manifestos,
por que os manifestos são todos cantados?
os oradores põem-se a gritar seus refrões pelos becos;

talvez um jorro de imagens monotônicas também faça os ouvintes arrepiarem
às vezes me irritam as palavras prostitutas


tantos "talvez" e "às vezes"
estômago vazio torna-se caixa de ressonância de sentimentos,
os afetos ecoam e multiplicam-se
fomes e mudanças de equilíbrios químicos


disse o burguesinho que nunca passou fome na vida e acha arte pela arte super revolucionário enquanto suporta a vida igual aos outros; quase mesmo de tantas autocríticas cínicas nunca reage.
receita para poema :

trajes incomuns, por exemplo nu
por volta das 3 da manhã, nem que debaixo dos lençóis
sons escuros atravessando o crânio (vale zunido de pensamentos elétricos)
estômago quase vazio
às vezes álcool para euforia
cigarros para extravasar,
solidão,
ter acabado de gastar energia em algo estúpido
vontades de lembrar sabores à vida

deixar insone ligado a algum aparato de escrever mentiras até esgotar.
reescrituras a gosto.
amaria escrever na velocidade do que falo, melhor, do que penso.
dane-se tudo aquilo que já disse sobre as canetas,
sobre as teclas do teclado e como expressar tudo-tudo passa pelos dedos com suas extensões de tinta;
aqueles devaneios tortos de que minhas palmas das mãos possuem a arte,
ah não,
tudo grandes mentiras;
queria mil-mais ah mil-mais-um ficar cantando minhas recitações,
ficar fazendo e desfazendo poesias com a Língua!
minha língua rainha da escrita faria a literatura veloz da fala
que em vez de tinta, jorraria saliva
em vez de manchas, beijos
se os biólogos chamam vida àquilo que se reproduz,
então para ser viva, arte precisa engravidar os leitores
(dane-se que seus filhos não se lhe assemelhem em nada,
o que importa é seu desejo irrefreável de fornicação)

se inspiração é um nome bonito para as mais devassas orgias metafísicas

os princípios categóricos e toda a patota de semi-deuses lógicos põem-se a tomar tantos porres e se entre-cruzar uns cos outros, resultando em ressacas de, no dia seguinte, ninguém mais saber quem era dono de quê, quem cometera o quê, para horror dos proprietários e suas grandes listas de nomes; além de os beberrões pôrem-se a abrir os armários mais velhos e lacrados, revirar todas as montanhas de lixo do quarto; bom de festa que muda os casais e as rixas, multiplicando e reciclando as possibilidades de fofoca.
talvez aquilo que irrita tanto a possibilidade de entender o que se passa aqui, agora,
seja de que muito penso nas canetas;
canetas as grandes máquinas de poesia da vida moderna,
e elas querem ficar tontas no papel, deixando rastros quaisquer em seu passo embriagado,
e todos os leitores não sejam mais do que isso: ficam apreciando os resíduos de uma grande bebedeira.

imagino tão fácil, as canetas voltando de suas noitadas e encontrando a manada de corvos a medir e calcular suas letras borbotoadas pelo caminho; e ela urgindo: não não, deixem disso! vamos beber; ora se derramei bebida por todo lado, então deve ter o suficiente pra continuar a festa nalgum canto destes, e beberemos essas gotas felizes!
viva então a intermitente anarquia literária!
que permite aos fluxos virtuais de embriaguez sua atualização, sua corporificação, sua encarnação tão necessária!

se ler é gritar

um grande título, não?

ora tão poderoso, apontando uma digressão curiosa, pedindo mistérios;
leva-nos a expectativas de um quê de escalas algo requintadas..

pois bem, vou contar o grande segredo: este título impediu seu texto de sair.
melhor, este título matou seu texto. sim! que é perigoso dar títulos;
em verdade, é muito perigoso dar mesmo nomes às coisas.
desde há muito venho percebendo uma característica profunda, sutil,
que passa pelas entranhas do denominar, em todas as suas pompas cognitivas;
oh! isto se chamará Y, ah! aquilo outro agora será X;
e os belos dicionários tão bem encadernados, capas de couro, e páginas finas de qualidade, com fontes bonitas, cheiros agradáveis;
que mal sabem tolos: dicionários são muito instrumentos diabólicos de uma vontade de sabe-se o quê,
longas listas de nomes, meus caros! não percebem?
se quando proclama o léxico: tal objeto se caracteriza por tais e tais atributos, move-se de tal forma, tem tais cores;
muito diz: tal objeto cometeu tais e tais crimes! tal objeto deve portar-se assim; se encontrarem-no doutras formas destruam-no! prendam-no! tal objeto não deve jamais sair dali!
ah! nomes ferramentas da não-liberdade!
títulos que aprisionam as palavras nelas mesmas, não, não,
prefirível nem dizer então.
jamais dar títulos - uma postura válida;
se todos os títulos mentirosos, tentando roubar a si suas glórias e reinar na página;
daí aliená-los, pô-los sem conexão com os súditos, torná-los algo como texto à parte mas paralelo, brincar com as mil possibilidades de suas relações políticas, recusando a mania monárquica que lhes vem tão naturalmente.

se ler é gritar

se ler é gritar
é estranho então sabermos que


veja bem: quando abrimos um livro - melhor, quando nos pomos a decifrar as primeiríssimas letras d’umas frases quaisquer -

ali naquelas cabeças profundas que temos
desde cedo plantaram, na balbúrdia dos anos infantes,
meia dúzia de léxicos e dicionários,
e que regados a sintaxes novas aprendemos o instrumental hábil a tornar-se consciente
- este somos nós,
o eu-floresta resultado da progressiva evolução daquela mata selvagem de palavras:

pois bem, então quando nos pomos a engolir uma literatura,
essa expressão é na verdade muito errada,
pois que o que acontece mesmo é o eu interno abrir sua imensíssima biblioteca virtual de todos os livros possíveis (que foi construída num quartinho chamado “abstração”) e ir procurar no índice geral (que tem na sua capa grossa de couro escrito “pensamento”) aquilo que corresponde às palavras vistas pelos olhos-nariz-boca-orelhas;
e então conforme na leitura vai publicando e imprimindo páginas soltas daquela peça,
e o que se lhe resta é um agregado de fascículos não de modo algum perfeitamente idênticos ao que foi lido,
porque a bagunça-vida da mente está constantemente assediada por ventos e tempestades,
mesmo porque também o ar quente às vezes carregado põe-se a decompor páginas,
e perdem-se muitas coisas; o que fica deve ter brotado fundo,
porque no entre-ouvidos em festa sempre a ser assediado por trovões e bebedeiras de pensamentos narcóticos do dia-a-dia, as obras se perdem.

que palavras são o chão e as estruturas de pensamento as árvores e o dia-a-dia se nos dá água (ou não, e talvez mate as plantas)
[já estou retomando aquela divagação daquele ‘tangente’, mas e daí]

[gostava mais enveredar pelas noções da biblioteca de tudo, de shakespeare, de borges]
das artes boas que sejam simples estruturas de ritmo,
e início em suas velocidades calmas, fáceis,
a recolher os mínimos pingos de alma espalhados pela preguiça,
atrair atenção mesmo das mais velhas e duras;
e pô-las todas no trem:
o início um capitão que manda todos entrarem e prestarem culto,
prepararem-se com cintos de segurança (e sem saídas de emergência) para a viagem que então começa;
a metáfora muito feliz da locomotiva saindo da estação (cafécompãocafécompão)
em sua batida rítmica acelerativa (mas inda um tanto caótica)
em seu martelar que lembra tanto o pulsar das metralhadoras e das máquinas de escrever.
ENTREM TODOS! e arte então um impulso avassalador,
daquelas avalanches monstruosas que se nos fazem pôr-nos a correr,
em pânico,
em prazer,
em sem-sentimentos - pura velocidade.

fragmento ilegível qualquer

[... como achar-te - eis a questão!
(quando se sabe que 'eis' em grego é a direção)
ser ou não ser para a questão; um ser-para-questão ou não.

embaralhamento de palavras enquanto tudo que gosto é transbordar termos em folhas gordas para me divertir dançando com os dedos no teclado! porque só há duas apreciações possíveis da música, que dançar (ai a dança é das melhores) e que escrever; ah escrever por simples balanço de dedos numas teclas quaisquer, conectar imagens como quem tem cola-tudo e quer criar daqueles móbiles enooormes que flutuam acima dos pensamentos dos bebês em seus berços quando tentam dormir cobertos pelos seus édipos mal-formados.
[...]
pausa para gesticular horrivelmente, porque simples martelar pensamentos não abarca a necessidade de coração acelerado que se me toma nestas notas lindas de aceleração.

a storm is coming ...]
ah mundo!
todos sabem o único meio de gastar vida é buscar aquela menina-fada,
ah, inspiração! onde andas querida?
alimenta minha barriga ávida por sentir-se plena de idéias,
que me adianta liberdades se não te possuo, se não te amo;
oh, que tudo faço em busca de ti, e é verdade,
mas se não sei quem és, ai de mim! quem és?
que és e como achar-te - eis a questão!
me perguntam por que desperdiço tempo revirando latas de lixo,
errando pelas ruas, me desmentindo;
mas se inda nem sei como não desperdiçá-lo!

eu gostava de dizer 'se eu fosse poema' em vez de poeta;

minhas idéias daqueles seres mágicos que todos devíamos tentar-ser em nossas mentiras que mudam o mundo; que um dia chamados elfos em seu flanar pelas ruas anárquico; ora talvez muito a ver com as mulheres que exclamam:
"mas então se eu fosse música"
que a arte das musicistas consiste muito também nelas mesmas,
ah bonitas! ah inspiram!

'ler henry miller' literalmente, que em sua pele viva estão tatuadas letras de invenção; a idéia 'henry miller' também um objeto artístico; ah apreciável! ah inspira! havia uma arte bem gostosa (tão denunciada) naquele tal Dali, o performático.

então arte, aquele vírus que infecta os leitores obrigando-os a produzir também
foda-se quem você é, só me responda: quem você pode ser?

pensamento vivo! que só pensa nos futuros e nos viveres que porá em prática.

rio, do verbo rir, do verbo ir

vontade de ser a grande maré que virá.

ser força irresistível que se vem nos inclinando,
devagarinho, devagarzinho,
para um mesmo eixo;
Ser-se grande Linha reta,
uma vida inteira simples traço, linha da vida
ver a si um fio negro unidimensional;
o grande canteiro de obras de uma ponte, de uma auto-estrada;
Outro dia abri o jornal e tinha uma dessas construções enormes,
daquelas avenidas lançadas ainda ao lugar-nenhum,
que se pegasse um carro, uma bicicleta,
ou simples saísse-me correndo feito barata,
e mirasse-me à frente, acelerar, acelerar, acelerar!
lançar-me-ia no vazio,
em meio ao espaço indefinido,
e minhas lágrimas, meus cabelos e meu cadáver
ser-se-iam em fundações para a próxima pilastra,
a próxima distância percorrida pela via,
o grande caminho,
a grande avenida humana, em vários sentidos.

quão bom não deve ser um rio enorme,
ser o amazonas extremamente gordo,
de uma risada de baleia azul, a maior de todas
que ao rir engole mil-e-uma almas minúsculas (e nem perceber que vive disso).
ser um fluxo caudaloso que atraia todos os outros a si;
que quando faz tempo de chuva de crianças novas,
todas essas gotas de sangue escarra-escorrem até as vias fluviais, artérias,
arrastando tudo em seu caminho em belas esculturas da erosão,
circulando a vida do mundo e pondo-a a gerar barulho; mas faltam rios!

quanto não deve fazer cosquinha engolir um milhão de pessoinhas,
fazer delas minha grande máquina de engolir as outras;
tanto melhor que haja esses monstros marinhos,
Leviatãs
(todas imagens que sempre nos remetem à água, seu poder de fusão e de torrente);
Muito melhor navegar o mundo em grandes naus bárbaras de conquista,
deixar os lençóis freáticos da cama para trás, e tempestear o mundo;
inaugurar a grande avenida revolucionária de vida!
que água parada trepa com mosquitos, pare mil sanguessugas irritantes;
prefiro deixá-la enlouquecida sem esse sexo de podridão,
atirá-la das montanhas altas para que coma ar e passe a parir som!

ah, grande ser-se em rio! e dar risadas que comam os outros -
onde estás?
grande eu-rio, ser de fluxo e de canibalismo;
eu-rio! onde estás? onde acabas?
eu-riodejaneiro! mês inteiro de risadas de baleia,
rio dos meses, Rio dos tempos; ah, grande eu-Rio do tempo!

inescapável prisão!
às vezes fico imaginando o quanto as fantasias sexuais do freud não influíram na psicanálise.
pensem bem: se o velhinho era ruim de cama (e ele era), quantos conselhos ruins não espalhou por aí?

Ix

outro dia estava pensando naquele filósofo (que foi tão influente em tudo):
seu nome era Ix.

muitos me diziam suas idéias belas e poderosas,
suas palavras mais verdadeiríssimas inusitadas, doces e mágicas, azul-arroxeadas,
que tudo dito jamais feito antes; era gênio, oh! arauto de novos tempos, sombra precedendo avalanches, dir-se-ia avant-garde!
e deixá-lo de lado só os mais velhos conservadores fariam,
e bla e bla-bla e blá.
e sendo eu um bom menino,
atento a fingir-me burguês e interessado em mudar o mundo,
localizei-o, e fui ouvi-lo falar.
estávamos então num seminário,
numa pequena cidade francesa, quem sabe
e várias personalidades disputavam o prestígio de derrotar seus adversários.
na época, estas eram ocasiões em que se forjavam correntes de pensamento,
venciam-se uns aos outros os intelectuais,
arena para assistirmos com pipoca os leões se atracando,
e podíamos pular lá dentro com eles.
tanto mais importante ouvir o tal demônio da moda:
presenciar feitos históricos,
dos quais leríamos depois nas antologias de textos canônicos,
e sorriríamos discordando e lançando a esmo aos alunos:
"ora, não foi bem assim;
lembro na época, ix pegara um resfriado..."
e por uma torrente de futilidades sem relação daríamos mais realidade àquele momento incompreensível, enquanto nele atrelávamos nossos nomes e corpos, de modo a partilhar de sua glória ante o mundo, tomando-nos por embaixadores daquela pequena data dita crucial, de que todos gostariam de ter tomado parte.
então estava eu sentado numa das fileiras mais ao fundo no anfiteatro,
e os grandes mestres sentados em suas poltronas preparavam-se para a luta,
que aí um dos mais aclamados vira-se ao nosso Ix e lança-lhe uma pergunta dificílima sobre um dos mais requintados artistas contemporâneos, tocam as três campainhas, apagam-se as luzes, e a Personalidade põe-se a falar.
é curioso, deste momento a diante só lembro lapsos de imagens,
acordava de vez em quando com os roncos dos vizinhos,
ou quando numa passagem bem divertida o técnico de som derrubou tudo;
sei que meu relógio estava quebrado, mas mesmo o som dos celulares apitando, ou quaisquer outras interferências bem-vindas não conseguiam afastar o torpor enorme que se nos apossara:
a voz de Ix;
um timbre,
uma maneira de concatenar frases,
um requinte especial de escolher seus ângulos de abordagem,
os exemplos que dava;
seus gestos na mesa;
suas pausas;
Não conheço viva alma que tenha conseguido ouvir por completo suas refutações revolucionárias.
sei que acreditei ter ouvido demasiado o suficiente,
e pus-me a citar Ix como exemplo a todos,
tomei parte em seu culto.
suas teses eram tão impossíveis quanto, e jamais as li.
conhecido meu, uma vez, deu-se à cachorra de trabalhar um pequeno ensaio da escola Ixista,
perdeu nisto boa parte de três anos,
sei que teve de interromper sua busca por falta de fundos,
por não conseguir nunca entender o maior pensador de todos,
por ser inábil.
eu mesmo dei vários cursos sobre Ix,
atribuía a ele as idéias que se me ocorriam as mais interessantes (jamais fui contestado),
e muito em breve os alunos me pediam a indicar leituras "legíveis",
e lhes escrevi livros de introdução ao Ixismo,
e criei minha corrente de interpretação ixista; não fui o único.
os congressos ixistas sempre foram extremamente incendiários,
e sempre os debates acalorados a qualquer tema de predileção ixista findavam a balançar as bases da vida mundana, e punham-se a ser vangloriados em todos os fóruns, e inspiravam movimentos e passeatas, e neles surgiam as lideranças do futuro.
quanto a Ix, o pobre tornou-se ídolo da geração;
não sei bem o que lhe aconteceu,
suas opiniões só me chegavam pela boca de outros;
então morreu recentemente, não sei bem se era velho;
em seu funeral acudiram milhares de fãs,
e dali marcamos o compromisso de nunca perdê-lo na memória, o grande mártir.
às vezes tenho impressão de a grande potência de Ix estar em sua maravilhosa manobra lógica, absolutamente indefensável: o sono.