a terra dentro da terra
enterrar o planeta
apagar o sol, fechar o céu
o céu é na boca

a alma do instrumento
todo vaso tem um dentro
desperto,
o fio de palavras rompe a superfícies escorrendo dos gasosos lençóis de sonho como nascente, cortando a paisagem com seu filete:
lembranças encadeadas, se ramificando, empoçando, turbilhonando contidas em grandes barragens e obstáculos ao pensamento...

Se pensar é singrar paisagens, se narrar é percorrer um caminho apontando os acidentes do terreno (suas frestas, seus perigos) para conduzir o viajante -
mas acima de tudo é uma incursão, ainda que conhecedora, cartografando para os outros:
é sempre uma primeira vez:
a jogada de corpo no pensamento.

Ponho-me agora a pegar com os dedos os rastros de outrora: meus próprios rastros.
A bússola que oswalde desenhou me guiou a uma terra incógnita e lá mergulhei, eu me perdi. Mas o segundo momento será já a deglutição de si...

alar-se sem cair no anjo

quando me nascerem asas como
mãos de pássaro
me envolvendo meu
e subindo
duas profundas mãos se me saindo
costas afora
como expelir o demônio-anjo por trás
da nuca dos ombros do
ponto cego completo, de mim: é dali
que sobe esta leveza poderosa
imperial de
cabelos soltos bonitos ao vento
e cá dentro o alívio sustentado
suspendido
encontrar meu elemento ar não por olhos luz e desejo
mas pelo não ver só soltar-me deixar-me acreditar-me ser-me sem segurar-me confiar-me em mim
quase aquela brincadeira de se deixar cair e o outro tem de segurar que é pra sentir que confia.

"já tínhamos o anjo! era meu corpo alado"
e então
a liberdade do
centro nevrálgico interseção encruzilhada
meu umbigo de costas meu nó
nos pilares do diafragma, na base das costelas lá atrás
- desatá-lo -
deixar-me subir o alívio
a leveza com ombros plantados
são na verdade asas que se abrem me expandindo
descomprimindo desoprimindo
que o centro das tensões é psico-físico
é ele-mesmo um nó mental
que desato
eu desato.
o homem nunca foi à lua, ele veio dela.
a utopia?
não é que ela não esteja em nenhuma parte
ela não é parte, ela não é de estar.
inlocalizável
abolido espaço
horizonte, paradigma do passo

voltar à utopia, mas incluir nela
o dinheiro, e daí desníveis
coordenadores e coordenados? rupturas?
e daí incluir nela
a maldade, e ser mau e não sê-lo
(a utopia não é só teu seio, teu colo farto
ela também é lágrima dor, navalha)

terá na utopia
(se é que se pode dizer "na" abolição do lugar)
também o tempo? ela é parada ou se move?
ou é uma transformação de distopias;
terá contradições na utopia?
terá o fim? a morte, o medo?

e de que serve a utopia?
se não tem nada disso, se é a só-metade
ela é mulher? é mãe?
não é... ela não tem o verbo ser

abismo na beirada do pensamento
sem chão nem céu

(também não é um vácuo, atração maior
do irreal)
reduzir-me
ao simples amor ao sol
e à pele e plantas
uma muda
em meio à ruína do mundo
rachando, desmoronando
é talvez a saída, o último
bastião que resta
(ou nem resta)
baixar a bola
expandir-me nesse pequeno amor...
é prescindir da ambição
que nos preenche o fundo
o céu da alma
(como tem um céu da boca)
de virar a onda
de reverter, de
instaurar
o grande corpo de amor do mundo.
e oscilamos, nessa ambição
e nessa contenção
esperando poder fluir, escorrer
canalizar-nos sem fugir
mas sem carregar o nada nas costas
sonhando a tomada das ruas
sonhando o sol
por toda a pele do chão
primavera
(meu casaco encostado)

O amazonas

Quando o amazonas corria para dentro, dessalinizando o mar
- hipótese de haver havido o matriarcado das amazonas -

afinal os maias foram basicamente perdidos

Verão

Nada parecia mais calmo do que aquele grupo de banhistas tomando sol na praia, meio-dia leve brisa e o mar azul azul azul quando os rangidos da areia esmigalhada sob o pêso dos corpos tornaram-se de repente mais audíveis do que o farfalhar das folhas. Não havia uma nuvem no céu e a baía coalhava de barquinhos, quando mãos imensas romperam a superfície do chão, tragando cangas e braço-perninhas etc. No local só restou um cachorro - cruza de poodle com tapete branco - latindo alarmado: isso não se faz. Dentro, os amigos entreeolhavam-se mudos num imenso salão subterrâneo, enquanto o gigante sorria dentes do tamanho de espaçonaves, afiando talheres para seu churrasco. Infelizmente, não havia saída, nem entrada para os que não sabiam mergulhar no sólido arenoso. Marias-farinha, tatuís, raízes de coqueiro: quando o gigante cortou o dedo e fugiu gritando, coube aos nossos náufragos montar um elevador de bambu e palha, e retomar o lagarteamento litorâneo. Verão.