dezembro vem, o mundo um rebuliço
eu sou cada dois dias outro,
e cada dois outros sou mais um.
havia poemas no guardanapo
ingenuinhos,
borrados, errados e finos,
todos embrulhadinhos.

havia rimas e injúrias
de que todos gostariam
mas hoje não, não.
(hoje, é só azul)

tenho mil poemas, mais de mil
rabiscos em lenços e guardanapo
esquecidos dobrados, largados
atrás da orelha ou do cartão.

mas quando finalmente
vem a hora mais bonita
de sacá-los, rápido,
e limpar lábios de meninas,

tudo voou.
tão fingindo terem nascido sessenta anos atrás
não são nem os pais: são os avós
duas gerações de mentiras
olhando para trás feito o diabo
do alto da dignidade daquilo que já foi tão forte
cuspindo nos poucos brotos que inda surgem
no caminho enorme que se abre
(que é luz e dia úmido)
mas só sabem dizer-se alheios e repetindo
usando de mapas mortos arrancados de museu
se esbarram por nem se verem
e derrubam-se, irritados
cegos, em sua religião do ontem.

Rádio

- Oi, meu nome é Rádio, e estou sem sintonizar uma estação já há duas horas e meia.
- Pessoal, dêem boas-vindas ao... Rádio.
- Bem-vindo (rádio).
- Bem, uh, Rádio, conte-nos como você começou a... beber.
- É assim. Tiraram meus óculos hoje, de repente. Bem rápido, assim; logo me deram de volta. Mas deu uma agonia sabe, eu de repente não via mais os outros.
- Rádio, você usa óculos?
- Ah, é que agora estou sem né? então. Eu sou míope, sem eles. Num segundo nós éramos Pessoa: uma grande Pessoa orgânica muito ajustadinha, as engrenagens se movendo loucas
- Desculpe, você não era um rádio?
- Eu era mais como mãos e olhares, quando você sabe onde colocá-los. Meus nervos se conectavam direto na carne dos outros. Eles se mexiam em mim. Eu neles.
(bocejos e tossidas na roda)
- De repente eu já não via mais ninguém. As pessoas se moviam sem mim. Desconectado. Desplugado. Me tiraram da tomada.
- Olhe, eu não estou entendendo. Alguém quer colocar algo?
- Seu Rádio, desembuche logo, ainda tem muita gente pela frente.
- Minhas mãos iam para a boca e eu fingia bocejar. Ligavam para mim e eu não atendia. Faziam piadas e eu não ria. Trocava as datas. Errava as contas.
- O que isso tudo tem a ver? Você não é alcoólotra?
- Comecei a ir aos lugares errados. Tentei marcar com o médico e ele não atendia. Fui no consultório e ele saíra há quinze minutos. Esqueci a carteira em casa.
- ...aí então você começou a beber.
- É assim, eu falo e ninguém me escuta. Oi, meu nome é Antena, estou transmitindo numa freqüência que ninguém ouve. Oi, meu nome é Rádio, eu não sintonizo em vocês. Oi, o mundo é uma grande Estação, e hoje eu acordei fora de sintonia, será que ninguém consegue entender isso?
- Mister Radio, you're not welcome here.
- Oi, eu estou tentando existir, Oi, alguém me escuta? eu nem enxergo mais ninguém. Minha cabeça está doendo, tirem suas mãos de mim! Oi, eu falo, falo, e eu estou caindo num abismo, e lá em cima o mundo e eu fico só na queda infinita vazia e sozinha, nesse buraco onde não há eco e não se ouve nada. (Il est fou!) Oi, eu sou um Rádio, eu preciso me ajustar, preciso apertar meus botões e manivelas: eu vou almoçar na hora certa e tomar café depois, vou dormir oito horas e beber vodca até cair, vou fumar que nem uma máquina e vender minha alma a todo mundo; talvez assim eu sintonize em algo, eu troque de freqüência e encontre alguém que me plugue de novo no mundo, alguém que pegue meus fios e veias e engate nos seus, pegue minhas mãos e saiba onde pô-las. Oi, vamos transar? Oi, vamos fundir nossos corpos? que eu preciso sintonizar no mundo, eu preciso crescer raízes, crescer âncoras - porque aqui onde eu moro venta muito sabe? Oi, meu nome é Folha e eu caio sozinho, não encontrei nenhuma teia de aranha, nenhuma amarra. Oi, Oi! tirem essas mãos de mim! Eu vou com vocês, me levem para a prisão, me joguem numa vala qualquer, eu devo estar bêbado! bêbado demais para os alcoólotras, eu achei que aqui saberiam falar comigo. Oi, meu nome é Mãos, e eu sou dois, e é por isso que eu fumo e bocejo e coço o cabelo e me escondo nos bolsos, e é por isso que eu me rôo inteiro e me agarro nos outros, e é por isso que eu quero sair nu no frio e juntar meus membros, eu quero dançar uma dança no chão certo, uma dança que pise nos pés bonitos que gritem, que gritem muito! Oi, meu nome é Rádio e é Antena e é Mãos, eu queria ser os três, dançando como os dedos num teclado, e existindo em uníssono, até que minhas pegadas fossem não só tristeza e ruído - porque eu nunca sintonizo! - até que saísse música dos meus olhos e das minhas mãos, dos meus suspiros e de quando eu tremo muito no escuro, sozinho e distante como estática perdida: até que essa estação que não encontro fosse criada: até que meus pés dançassem como mãos num teclado, formando palavras e bonitezas e todos me lessem os olhos e me soubessem consigo, universo, pessoa-mundo organismo, vida, nós Folhas espalhados unidos pela teia de aranha: e quando ventar farfalharemos sintonizados como rádios, seremos música com nosso farfalhar lindo...!
...
- Oi, meu nome é Paulo, e eu...

pneumática

ela era ácida e linda,
a das dobras selvagens
flácida e míngua, língua
ardente a passear pelas margens
dos seus lábios carnudos, bojudos
com banhas fartas em anéis
os olhos mudos, tesudos
ela custava vinte-mil réis
mil beijos nessa barriga amiga
tão volumosa e pneumática
pneus grossinhos de lombriga
da adorável puta simpática
a minha bolinha feia e errática
a minha gordinha asmática.
por que não?
(um rascunho)

o médico me mandou parar.
eu estava muito, muito; o médico olhou para mim nos olhos e disse: pare.
no começo não entendi muito bem, tentei até argumentar com ele. fiz caretas. grunhi dúvidas. suspeitei de seu currículo. olhei os certificados pregados nas paredes.
mas ele fora categórico: pare.
por quê doutor?
o médico olhou em mim fundo nos olhos, mas era como se ele não estivesse me vendo. eu quase sentia ele me procurando, havia um certo tremelique na pálpebra direita, a boca torcida em vão. havia muita luz no consultório, luz branca de doentes, sobre superfícies e almofadas brancas, e os papéis brancos em cima da mesa branca, o jaleco branco no branco dos olhos dele; eu estava bastante ofuscado, as luzes apontavam para mim. aquela claridade monocromática, e ele tentava me olhar fundo nos olhos - mas meus olhos sempre foram negros. eu sabia que ele não me olhava muito bem, mesmo com tanta brancura. ou por causa da brancura. ele olhou para mim com aquela palidez mórbida de médico, ajeitou o jaleco no corpo, começou a mudar os papéis de uma pilha branca para outra pilha branca; e disse que, para começar, não fazia bem à minha saúde.
não faria bem. minhas mãos, para começar. o que tem minhas mãos, doutor? elas ficam tremendo, ficam tentando sair do lugar. não dá para pará-las quietas. está tudo relacionado. não faz bem; você e suas mãos, agarradas nos quadris, roçando o cabelo. não fazia bem.
mas isso era só o início: ah, porque era quase um crime. e minha mulher ia me abandonar. e os meus amigos iam me trair. meu emprego ia me engolir. eu ia parar de combinar roupas. eu ia ficar mais míope. podia começar a tossir todo dia (ele tossiu bastante antes de dizer isso).
foi bastante estranho, mas ele era médico, doctori absolutum estava escrito, nos certificados enquadrados por todos os cantos, e médicos são para isso. eles nos dizem o que é higiênico e o que não é. eu estava sujo, ele dizia, dava para ver nos meus olhos negros. sujo, estava sujando seu consultório ali mesmo. eu tentava olhar bem nos olhos dele mas a brancura me doía. eu acho que eu doía nele também, mas todo mundo acha isso. minha impressão fugidia de que fazia mais mal era a ele mesmo, essa negrura nos olhos, essas mãos amassando a receita do remédio, essas gotas de suor umedecendo o couro branco tranqüilo da cadeira. o olhar dele, escondido debaixo das pálpebras grossas (a da direita tremia um pouco), tentava reprovar, tentava me acusar e dizer: ali, ele ali, olha ele.

pare.

ele estava até certo, como eu vim a decidir. quando eu andava na rua, era como se... como se entrasse em mim uma coisa... como se eu estivesse andando mas
as minhas mãos me agarravam nos quadris. eu olhei bastante no espelho, fiquei encarando minha imagem, até ela ficar toda borrada. era feio. era bem sujo mesmo, o médico tinha razão. eu virava uma rachadura preta na parede branca, uma mosca esmagada, um erro.
mas quando eu saía na rua as mãos saíam de mim e iam para a rua também. não havia jeito de deixá-las quietas, em casa, nos bolsos, cruzadas, inquietas..

eu ficava olhando as pessoas andarem, e notava a quantidade de sacolas. carregavam coisas, filhos, pessoas, livros, guias turísticos. eu resolvi que precisava de uma sacola.
era um grande avanço para mim, eu telefonei para o médico, eram 3 da tarde, ele acordou furioso e não entendeu nada, eu dizia doutor, vou ser sacoleiro, ele me mandava à merda.
aí no início eu peguei um saco plástico e fui até a pracinha, coloquei uma pedra dentro, e saí na rua. foi muito gostoso. acho que foi o melhor dia em dias, as minhas mãos tão atarefadas, nem me viram caminhar tanto, elas ficavam reclamando do peso, do barulho, do tempo, reclamavam muito, nem me incomodavam com suas perguntas, com sua tremedeira e me apertando a barriga; elas se distraíam. sossego. andei sem parar durante um dia e meio.
mas as pessoas me estranhavam com essa história de sacola. e era estranho mesmo. e pesado. a sacola acabou furando e eu sentei numa escada e fiquei muito triste. minhas mãos davam socos na pedra e se cortaram um pouco até, meu nariz espirrava, minha barriga ficava caminhando sozinha.

minha segunda idéia foi fazer compras. durou um mês, todo dia eu iria no supermercado três vezes. mas eu não agüentava direito e ia um pouco mais. teve um dia em que eu fui doze vezes, os atendentes até estranharam. eu fingia que não era comigo. muitas sacolinhas brancas de plástico, e muitas tarefas. fui feliz.
minha casa estava muito entulhada, depois de algumas semanas, e as sacolas foram saindo do controle. de noite ventava muito, e elas faziam uma barulheira, o vizinho de cima até reclamou. eu não conseguia mais dormir. resolvi que não iria mais fazer compras. sentei na cama, e chorei muito, foi um dos piores dias.

quando eu saía na rua, meu corpo começava a sacudir. as pessoas que passavam por mim percebiam o que havia comigo, percebiam o que eu estava fazendo. e aí elas começavam a pular, e lançar foguetes e gritar muito, tudo muito sutil e só alguém com uma lupa muito boa perceberia. mas eu percebia, porque era tudo dirigido a mim. minha pele ficava toda balançando, os sons dos sapatos alheios se encaixavam, eu percebia que a senhora de vestido feio estava mancando o pé direito, enquanto aquele menino com camiseta de colégio passava mais rápido de propósito, eles riam de mim escondidos, eu começava a tremer, a dançar sem controle. as pessoas me olhavam estranho, se fazendo de inocentes, enquanto faziam uma barulheira linda, que me tomava o coração nos batimentos, tumtum tumtum, minha cabeça quicava.

o médico me mandou parar, ele estava certo, ele sempre estava certo.
viverei em frança
cercado de mentiras e jogos
fumando a mais não poder

levarei café e farofa
e uma vassoura.
varrer o sena
me sustentará

vou explodir de filmes
de invenções idiotas
de histórias tortas
de tropeções e erros

algum dia.
inventar a história das novas cores quando a vida é cinza;
cinza de cigarro apagado na boca
resmungando..
acelerar as vidas e os sopros
o corpo sentado, dormindo
só correndo se sentia o vento arrastando os cílios
as mãos dormindo, os pés dormindo, os lábios dormindo
só faço dormir minha vida inteira

café, mais café,
por favor
novembro vem,
o vazio do mundo, e o tempo voando, e nada fica
cuspes empoçados criando dengue