no espelho alguém me olhou mas, as cores estavam de ponta-cabeça

maio e
nada fazendo sentido.
como tinta descascando,
cobras trocando de pele
(mas na verdade são tantas
cabelos de medusa
cabeças de hidra)
sinto-me rachando
como, esfacelando
torrões de areia se desmancham sob água
e me construo
de mil tijolos
sem cimento no meio

mas faltam pedaços, está tudo esburacado

agarrar a rua para engolir cigarros, mas não bastava, as falas me invadirão e blasfemarão sobre a tessitura implícita linda de tapete mágico que ora constitui meus órgãos internos, intestinos e, boca fechada rija de prazer intenso em não-ser, agarrar a rua para fugir desta transição horrível, entortar minhas coordenadas geográficas para dizer: não foi na mesma estada aqui em que eu fui tanto carne quanto som, eu saí no entreato para voltar outro, para poder dizer que não sou o mesmo no mesmo rio inmesmado: saí correndo, preencher-me de cansaço, secura na boca e dor nos pés: preencher a existência com carne - não me agüentaria vestido de vidro e espelhos, de ilusão aérea, de sonho
via estrelas com os olhos e os pulmões apertados cantavam seus nomes, que olhos? nem havia mais imagem só car-ne-cor-po
e me vinham ventos de contrário, ventos de não-existência de ponta-cabeça, e como ser novamente parido - uma parte de cada vez, ondas de renascimento ininterruptas e mim: como um código de barras, holograma falhado no estar-ali; 'estar'? nem era verbo existir, nem era verbo: minhas lacunas onde a música berrava mais forte do que o verbo ser
eu sentia-me lavado
como o mergulho na imensa cachoeira do centro do mundo, quando me despi de todas minhas vidas e mandei os atavismos e neuroses à merda, quando mergulhei naquela água impossívelmente mortal que queria me cortar em tantas tiras quanto os traumas e resmungos de frio, quando lancei toda minha existência ao sabor da sorte e sobrevivi - e sobrevivi - eu saí limpo, verdadeiramente mais nu do que quando mergulhei sem roupas
e antes a vida passava diante dos olhos como um tédio vago, melancólico, querendo me vender clichês de vida - como isto fazia parte! mas adiante, por tantos anos eu não era mais corpo ou mundo mas só sonho - e o fim: encarnar como um tijolo cai do topo dos prédios podendo matar por engano
meus dedos meus braços dormentes esticados contraídos espasmos
agarrando um cano de ferro por perto com todas as forças que tinha o suor nas minhas mãos eu era este punho fechado como uma âncora no aqui e ondas e ondas meu corpo não era solo era Mar porque vinha em levas em levas como ondas batendo na praia eu era as ondas a sensação de ser ondas a verdade de existir me atravessando minha alma vento sobre a paisagem a planície o trigal e os ramos balançando em meus pêlos escritos naquela escrita eólica, o som me vasculhava com sua pesada língua distribuindo explosões de gosto e umidade, abalos sísmicos nos meus eus-tectônicos: ser-se em vagas, vagas, existir como um movimento descomunal, existir mas sem-querer, subi numa locomotiva de música que gira gira gira me leva para tão longe como uma roda da fortuna sem-querer e me faz ser-me menos, obrigado, posso enfim desfazer-me, feliz
A linguagem é um laboratório. Misturo palavras e profiro frases avaliando seu gosto, peso e a maneira pela qual reagem com minha opinião.

Como um cientista e seus aparelhos, experimento, regulando minuciosamente língua e cordas vocais. Sintetizo novos compostos, refino-os em seus elementos puros: encontrar a fórmula perfeita de sua enunciação.
é como se
na verdade
fossem dois
mas não parece

pego uma fruta
bem madura
sugo o doce miolo
deixo-a oca

vamos morar lá dentro.
e, no centro de tudo,
cachoeiras de lábios
como magia
uma pedra de rins
um caroço preso na digestão
uma bola de caranguejos esperneando entre os pulmões
um átomo radioativo engolido por engano
enorme coluna dórica instalada entre os músculos
fazendo força por sair
insistindo por uma existência impossível -
sonhos estropiados
com tantas pernas e braços
e bases da biologia submarina das fendas abissais
com sua luz incerta
berrando, a fachos largos
não! não! não!

corpo de soluços e convulsões
e algo dentro
embaralhar as palavras dos outros
sorrir, irônico
isto nem parece meu
nem sei o que isto quer dizer
- não estou preocupado.
transpirando à vontade
levanto a tampa
do pote de plástico
e banho os cabelos
negros

corpo descartável
sem dono
estoira como uma seta
- você não faz mais o barulho gostoso
quando entra em casa como um marido bêbedo
que bate nos filhos e beija a mulher,
nem ronrona como um carro virando a esquina
brusco,
insone,
engolindo os minutos como bolas de papel amassadas
entaladas no meio da voz
crescem em mim
dentes
de morder batom

checo a lista de quartos que estalam quando se entra:
equivo-os, todos

a porta de casa tem um cheiro esticado
de dias de meio de mês.
ela murmura, sorrindo
onde vais, tão cedo?

reconheço as pernas douradas da rua
e beijo a porta até sair sangue
sangue cheiroso
com o cheiro da tv rezando
por suas muletas de bronze
que carregam o hoje para o inferno

roubar tijolos do apartamento de bonecas
onde o almoço é comido pelas moscas

um ônibus ocupado
sendo uma Ferrari
cospe nos meus pés

meu prazer se confirma
numa garrafa pegando fogo
e o óleo diesel dos teus cabelos
estou fungando extasiado

dou grama ao mágico
pinto-me de rosa
torturo meu colchão
com lágrimas de vidro
sonhei: meu corpo evaporava
a sensação de evaporar, hmmmm!
como sentir-se namoricando moléculas
e outros termos químicos físicos científicos
o gosto dos segundos na boca
minha pele indo na frente com o vento
e todo meu corpo uma estação de trem
última chamada! última chamada!
mas a boca se mexia muito
incomodada, remoendo
cerrada: os segundos presos entre os dentes
membranas tapando as trocas de tempo
as novas datas a entrar e sair
as novas horas
minha boca de relógios quebrados
sempre com a mesma história, o mesmo minuto
meu corpo evaporava e gritava hmmm!
os poros exclamando como mil boquinhas
e meu coração numa panela
cozinhando
uma erupção de cartões postais
da terra do alfabeto
"Às vezes me canso de tanto deliberar sobre 'nada' (como diria o mundo); tento então, num sobressalto, como um afogado que toca com o calcanhar o solo marinho, voltar a uma decisão espontânea (a espontaneidade: grande sonho: paraíso, poder, gozo): pois bem; telefone-lhe, já que você está com vontade! Mas o recurso é vão"
minha cabeça tem como amores platônicos
por se ver linguajeada em papel
mas bem sabe, a afoita,
que pousar em carne lêtrica
envolve dores e desastres.
quem nunca viu dois amantes de amor cego
ao abrirem seus olhos
piscarem duas, quatro, sessenta vezes?
só mesmo a mão,
traiçoeira,
e os braços,
arrebitados,
podem insistir nesta cascata exuberante
no bailado das palavras para a vida
na escrita final sobre folhas de mundo
desenhar destinos na face alheia
frases-beijos numa branca face.
só mesmo o corpo
é forte o bastante
para dançar
um crime e
luto pela imaginação
luto

lição infinita
os naufrágios devem ser impetuosos
certeiros; não deve sobrar destroços bóias
remos ou esperanças e fantasias de 'terra, um dia'
terra, é sempre miragem

esquecer tudo e afundar, límpido
o real é o de menos
viva a realidade onírica do mar
entrincheirar-nos em palavras
lançar, atirar, jogar granadas uns nos outros
desenhar nos rostos ou pulsos trombetas
fantasia de muito-além
e nada mais.

o final do filme
do show de striptease
ou da porra da vida
não interessa
o rumor da escrita sussurra
é noite
teclas vibram sob o impacto límpido de dedos leves
eu sonho

aires calmos me ocorrem como lâmpadas brilhando
estilhaçando vazias
em becos escuros
e seu ar de tudo preenche o branco branco do dia que foi

serena mão da noite
me afaga, lenta