maio

mas é claro que já não restam aviões!
comemo-los todos, no café.
e o céu vazio de aerófilos se distrai pensando:
por que não acordar as gentes a baldes d'água?
já é tarde - o sol se cansa de vomitar luz nessas tuas caras.

eu me vesti com galhos e penas,
enorme lança-chamas de fúria e erros -
desafiei as esquinas a me mostrarem com quantos leques de seda se constrói o moinho que gire, que gire que gire,
mas faltavam-me as engrenagens tortas que moer tantos lances de dados enviesados, caindo de quatro sob um destino falso:
e debaixo de uma chuva de folhas o outono se abriu.

eu me escondo atrás de arpões e navios
e toda uma enciclopédia de deuses marinhos
pronto a começar a moldar meu exército de argila
que esguichará dos ralos dos banheiros
e dos buracos das fechaduras (trancadas);
invadir as casas mais infelizas e cantá-las todas:
- fim da era do pão e do fósforo!

jamais saberemos de novo a arte divina de lamber os lábios de crocodilo que ocupam a própria alma destes embrulhos de celofane que me cercam, ditas pes-soas!
tempestadeando como mosquitas ou cerejos caindo em profusão -
mas eu era apenas um menino
no alvorecer de maio, borbulhante
e minhas mãos dedilhavam rolos de papel higiênico
com que cobrir o teto de suas igrejas de ópio
e deitar-lhes ébrios num abrigo ácido de doces e
enguias verdadeiras rastejando dentro de las ropas.

raiz do céu,
te batizo: maio!
oi meu nome é janelas de vidro eu sou um pássaro boiando em céu farto de cores e azul me transborda pelos olhos quem sabe um dia não fui eu algo mais que esta vontade de espreguiçar-me como uma nuvem desenha labirintos de branco e algodão no horizonte
despejo aqui muitos desvios escondidos por acaso
abril, um turbilhão
deito orelhas num rio
deixo as águas contarem
estórias turvas.
remoinho e bolhas e bolhas de ar
peixinhos e seixos e algas do mar -
deito orelhas num rio
sou água e nado numa
estória turva.
mas, será
este grande arroto do tudo
trancado em estreita garganta,
tosse, tosse
queria descascá-lo, em fatias
(como a maçã engolida há dias
entalada na metade do caminho
saiu com uma pá, afiada
cravada fundo na goela aberta)
os pulsos dormentes
pulsando, inertes
sob a fúria fria de tantos tumores familiares
humores familiares
quase afagam por dentro, cosquinha -
ébrio, mas faltam tesouras
que rasgar pêlos e cabelos
furar a grossa bolha de pele morta e
ossadas de mentiras velhas
presas entre a gengiva e o dente
tosse, tosse
pulsos medrosos, bananas
jamais levantam um dedo sequer
para puxar fora
o sangue coagulado
a ramela dos olhos
o cuspe no canto dos lábios
os cabelos, embolados, na boca do ralo.

a maçã
faz falta
abro a caixa do correio
todas as cartas começam com a mesma frase:
o mundo foi adiado, ele não vem hoje
adiado sem data definida,
ele foi para longe.

que fazer
da espera silenciosa
d'um amanhã tão incerto?

que fazer - com o viver
porque sempre há um amanhã
chegando atrasado.
teus quadris são círculos
que sempre voltam, girando girando
giros de tontura e eu quase perco o chão com teus quadris
que sempre voltam.
meus lábios embaçados
amo lábios
meus lábios míopes só estão em casa quando pousam em ti.
chovia canivetes - imagine o som metálico da chuva
canivetes abertos, era uma tempestade de perigo.
teus lábios magnéticos
assassinos
me prendiam enquanto minhas roupas gelavam
tua cintura invadia meu abraço frouxo
um prazer confuso
cheio de vertigens e mundos rodando, rebentando
e quando beijávamos então,
o céu se abria, e desabava um rio, e era um fluxo contínuo de brinquedos de plástico se arrebentando no chão com um som ensurdecedor
as bonecas, os triciclos e os caminhõezinhos se partiam, uma cascata de infãncia rompida
sempre que eu te beijava para mim o céu se abria, e quanto mais longos os beijos mais daquela torrente de brinquedos rebentados me invadia,
te beijar tinha essa virtude perversa de destruição.
facas e
facas, e facas
e facas duras
como machadadas voam em tempestade sobre os cabelos
e os gestos, animal encurralado, furtivo,
os olhos tristes dizendo tanto -
mas da boca nada, só rugidos.
e por detrás de mechas de cabelo escorrido na chuva de lâminas
pedaços de mim voam, ao meu redor, turbilhão de perfume
cortes de tesoura nos dedos
cortes redondos, sangue escorrendo
facas e facas
eu disse, eu disse
eu já sabia.

mundo mundo, vasto mundo, de tropeços!
coberto da neblina fria, cobertor molhado que puxe e repuxe a pele, textura ruim de podridão - e quantos dias demorará no sol secando, minhas roupas, minhas gripes e minhas belas desculpas para não sair de casa - me envolvendo, sólido envelope de inércia

a foice corta como navalha
e os cortes jorram sangue quente
mas palavras são mais cortantes
cortam como o jorro frio que me rasgou as carnes em meio às lonjuras indecisas do monte Mundo, quando entreguei aos outros meu destino, que decidissem minha sorte em suas conversas de pescador - mas, por favor, continuem me gritando! eu exclamo, rezando que essas rédeas frouxas me levem aos meus caminhos mais-amados, enquanto meus moles pés de barro mal e mal atrevem escorregões na lama, e sou quase um filho de poças paradas, mais um mosquito esperneando fútil, cuspe boiando sem fé,

e engolia pedras
engolir um não-quero, não-quero-não-quero!
mas minha alma é minúscula. e não comporta delírios inveros
e então abriram-se as bocas como portas e portões, abriram estoirando feito represas, e não quero saber das cidades devastadas nem dos fogos e do futuro incerto, quanto mais as águas lavando as casas em seu desfile mórbido, arrastando cadáveres e cinzas vulcânicas - quantas erupções não houve neste peito ferido! - ah, que tudo se vá..
os braços se estendem como os mastros de um navio, e o cordame teso, e os anos de trabalho que foram gastos em realizar tudo aquilo - para só um rochedo insultuoso m'afundar? jamais.

há que correr muito
porque moles nuvens me escapam da boca como baba, e meus bocejos lentos convidam nublagens a s'apossarem de todas as almas -
minha alma minúscula! que nela nem cabem tantos nãos não-ditos.
sou tão pequeno!
aquelas palavras pesadas, imensas,
palavras de imensidão e como um colosso que engulo de uma vez só,
me sinto primo de cobras e crocodilos, estirado no gramado digerindo tanto mil vezes maior do que meus pobres laços e sentimentos finitos,
me esmaga, me esmaga, sou atropelado por algo de tão imenso que ah, fiquei para trás, selado neste envelope de névoa e desgaste, nesta teia de fofocas tortas entupindo meus olhos;
palavras e nem sei o que estão dizendo,
mas ah! sou maior por ser pequeno,
porque então as dores nem cabem em mim, e estoiram ao meu redor como perfume!
e se vais jogar em mim teus mísseis de dor eu me esquivo, eu sou somente um leve grão de areia e nada me pode atingir, meus castelos de areia que construirei quando a poeira baixar, ah, nada passará, porque minhas lágrimas de cimento servem a unir tudo como cola, e montarei bibelôs em cima de todas as mentiras que vomitam..

há que escorrer muito
sobre peles alvas, a vida lenta como uma lágrima ou uma gota de suor, nem se sabe qual é qual, lenta escorre sobre as faces, bochechas carnudas sedentas de beijos,
seca vida de pudores secos
afogada em cobertores de tédio e nada..

mas tudo isto devaneios tolos que me permitam falar, como queria falar,
preciso chorar lágrimas sem água,
lágrimas secas, feitas de osso e cinza,
feitas de lamúrias sonhadas,
preciso chorar sonhos

minhas lágrimas de sonho, e berros oníricos me voam dos lábios aos ares, como cânticos
porque faltam-me os dentes afiados para morder e chorar na carne -
banguela, choro poemas.
que aterrisem em ti como gotas pousam n'água, feito um balde de amores, desenhando bocas ou ventosas que agarrem em teu corpo nu, te amarrem aos meus quereres infindos, armadilhas -
quando um dia inda hás de sorrir, prisioneira.
boca antiga,
pensei que lavava teus lábios
molhados e famintos

pernas brancas,
procurei no dicionário
quantos nomes já não tiveste

só encontro
rouquidão
ares febris de cão
e gravar os dentes em teu travesseiro
rasgar lençóis, abocanhando
latindo
só um rubor doce te invade,
mil
sonhei despir teus olhos bambos
de tanta frieza -
acordo trêmulo, os dentes secos
o gosto amargo dos teus resfriados fingidos,
quando te finges distante
não -
só posso chamar-me canino
farejando pistas
mastigando meias
ganindo
minhas brutas patas beliscam
até decorar teus contornos
correr meu focinho em teus grãos de beijo
e trair tuas mordidas;
só posso chamar-me canino.
cortava papel como cortava vida
rompia,
a tesoura um barulho gostoso
em linhas nunca retas
escorregando, ávida
partindo elos e ligamentos
em muitos;
vulcão de pó

muitos,
e um tapete de recortes
pedaços de vida, palavras
memórias embaralhadas, amontoadas
um labirinto e
a cada lance de dados, o sorteio
uma nova frase se alinhava às já muitas
espontâneas
passageiras
desmoronando ao mínimo sopro de vento

voa papel,
voa e
leva embora a expressão confusa
do meu amor passado
rodopiando, leve folha de outono
perambulando nos aires
que se dobra e suja,
se borra
diz outra coisa
voa
um deserto e
golpe rápido, certeiro
para fora do imaginário (tão batido, debatido)
será desaprovado por muitos, talvez
mas só este
findará o areal

inda hei de te ler
de novo

- para arthur
mas eu e
mergulhos furtivos no escuro