(um rascunho)

o médico me mandou parar.
eu estava muito, muito; o médico olhou para mim nos olhos e disse: pare.
no começo não entendi muito bem, tentei até argumentar com ele. fiz caretas. grunhi dúvidas. suspeitei de seu currículo. olhei os certificados pregados nas paredes.
mas ele fora categórico: pare.
por quê doutor?
o médico olhou em mim fundo nos olhos, mas era como se ele não estivesse me vendo. eu quase sentia ele me procurando, havia um certo tremelique na pálpebra direita, a boca torcida em vão. havia muita luz no consultório, luz branca de doentes, sobre superfícies e almofadas brancas, e os papéis brancos em cima da mesa branca, o jaleco branco no branco dos olhos dele; eu estava bastante ofuscado, as luzes apontavam para mim. aquela claridade monocromática, e ele tentava me olhar fundo nos olhos - mas meus olhos sempre foram negros. eu sabia que ele não me olhava muito bem, mesmo com tanta brancura. ou por causa da brancura. ele olhou para mim com aquela palidez mórbida de médico, ajeitou o jaleco no corpo, começou a mudar os papéis de uma pilha branca para outra pilha branca; e disse que, para começar, não fazia bem à minha saúde.
não faria bem. minhas mãos, para começar. o que tem minhas mãos, doutor? elas ficam tremendo, ficam tentando sair do lugar. não dá para pará-las quietas. está tudo relacionado. não faz bem; você e suas mãos, agarradas nos quadris, roçando o cabelo. não fazia bem.
mas isso era só o início: ah, porque era quase um crime. e minha mulher ia me abandonar. e os meus amigos iam me trair. meu emprego ia me engolir. eu ia parar de combinar roupas. eu ia ficar mais míope. podia começar a tossir todo dia (ele tossiu bastante antes de dizer isso).
foi bastante estranho, mas ele era médico, doctori absolutum estava escrito, nos certificados enquadrados por todos os cantos, e médicos são para isso. eles nos dizem o que é higiênico e o que não é. eu estava sujo, ele dizia, dava para ver nos meus olhos negros. sujo, estava sujando seu consultório ali mesmo. eu tentava olhar bem nos olhos dele mas a brancura me doía. eu acho que eu doía nele também, mas todo mundo acha isso. minha impressão fugidia de que fazia mais mal era a ele mesmo, essa negrura nos olhos, essas mãos amassando a receita do remédio, essas gotas de suor umedecendo o couro branco tranqüilo da cadeira. o olhar dele, escondido debaixo das pálpebras grossas (a da direita tremia um pouco), tentava reprovar, tentava me acusar e dizer: ali, ele ali, olha ele.

pare.

ele estava até certo, como eu vim a decidir. quando eu andava na rua, era como se... como se entrasse em mim uma coisa... como se eu estivesse andando mas
as minhas mãos me agarravam nos quadris. eu olhei bastante no espelho, fiquei encarando minha imagem, até ela ficar toda borrada. era feio. era bem sujo mesmo, o médico tinha razão. eu virava uma rachadura preta na parede branca, uma mosca esmagada, um erro.
mas quando eu saía na rua as mãos saíam de mim e iam para a rua também. não havia jeito de deixá-las quietas, em casa, nos bolsos, cruzadas, inquietas..

eu ficava olhando as pessoas andarem, e notava a quantidade de sacolas. carregavam coisas, filhos, pessoas, livros, guias turísticos. eu resolvi que precisava de uma sacola.
era um grande avanço para mim, eu telefonei para o médico, eram 3 da tarde, ele acordou furioso e não entendeu nada, eu dizia doutor, vou ser sacoleiro, ele me mandava à merda.
aí no início eu peguei um saco plástico e fui até a pracinha, coloquei uma pedra dentro, e saí na rua. foi muito gostoso. acho que foi o melhor dia em dias, as minhas mãos tão atarefadas, nem me viram caminhar tanto, elas ficavam reclamando do peso, do barulho, do tempo, reclamavam muito, nem me incomodavam com suas perguntas, com sua tremedeira e me apertando a barriga; elas se distraíam. sossego. andei sem parar durante um dia e meio.
mas as pessoas me estranhavam com essa história de sacola. e era estranho mesmo. e pesado. a sacola acabou furando e eu sentei numa escada e fiquei muito triste. minhas mãos davam socos na pedra e se cortaram um pouco até, meu nariz espirrava, minha barriga ficava caminhando sozinha.

minha segunda idéia foi fazer compras. durou um mês, todo dia eu iria no supermercado três vezes. mas eu não agüentava direito e ia um pouco mais. teve um dia em que eu fui doze vezes, os atendentes até estranharam. eu fingia que não era comigo. muitas sacolinhas brancas de plástico, e muitas tarefas. fui feliz.
minha casa estava muito entulhada, depois de algumas semanas, e as sacolas foram saindo do controle. de noite ventava muito, e elas faziam uma barulheira, o vizinho de cima até reclamou. eu não conseguia mais dormir. resolvi que não iria mais fazer compras. sentei na cama, e chorei muito, foi um dos piores dias.

quando eu saía na rua, meu corpo começava a sacudir. as pessoas que passavam por mim percebiam o que havia comigo, percebiam o que eu estava fazendo. e aí elas começavam a pular, e lançar foguetes e gritar muito, tudo muito sutil e só alguém com uma lupa muito boa perceberia. mas eu percebia, porque era tudo dirigido a mim. minha pele ficava toda balançando, os sons dos sapatos alheios se encaixavam, eu percebia que a senhora de vestido feio estava mancando o pé direito, enquanto aquele menino com camiseta de colégio passava mais rápido de propósito, eles riam de mim escondidos, eu começava a tremer, a dançar sem controle. as pessoas me olhavam estranho, se fazendo de inocentes, enquanto faziam uma barulheira linda, que me tomava o coração nos batimentos, tumtum tumtum, minha cabeça quicava.

o médico me mandou parar, ele estava certo, ele sempre estava certo.

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