cálice

passe tudo,
passe carteira, celular, relógio, dinheiro, cartões, tudo
esse buraco de vida, esse furo, goteira no encanamento do mundo
algo se perdeu ali
como um ralo
eu era vento, mas era sonho
se escorria dentre tais valas de mortos, trincheiras duma guerra nunca travada, empilhando velhos
um furo, uma goteira, rachadura na barriga,
como ter rasgadas as tripas, sentir-se um saco de órgãos furado, e eles caindo todos por todos os lados, nem dor mas este vazio, este oco interno
sou um caixão de gente, tronco seco sem vida
o antigo interior gordo de lembrança e tudo em quanto pudesse pôr as mãos
apodrecera, bichara,
talvez por infecção externa, infecção bondosa, novo parasita
que ora se insere lentamente para dentro,
este terror de sentir-se mero casulo, mero cálice
onde os líqüidos se derramam, onde passam as vidas sendo bebidas por gigantes imensos que jamais vi nem verei
passado de mão em mão, cálice, até quebrar
este terror entre os goles,
quando um esbarrão tímido com a ponta das unhas ou mesmo no garfo ou no anel
faz o cristal tilintar
e sou uma redoma de vidro em dor,
uma estufa crescendo meus fungos internos, minhas florestas; cálice sujo
notar-se vidro: ouvir seu próprio som por cima do burburinho do líqüido nadando
tilintar seco tão assustador, que nos mostra vazio
em seu tom
meu nome é cálice
cale-se

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