Para descer

descobri
no fundo do meu ombro
que estava sempre ali
- num túnel duro, num
buraco de agulha que nunca se fecha e
que na verdade
era por onde ela respirava -
lá do outro lado dessa pele-osso-eu,
espremida entre as placas de eletricidade
entre os dínamos de leão
e a massa atômica
a caldeira, o motor-mundo
a fera e as jaulas, as grades, os dentes:
sim 
minha alma minúscula

como um pequeno andré
um serzinho, homúnculo
migalha de gente
ali ficou presa, embalsamada

Passaram-se séculos
como muitos cobertores
num dia frio, pesados
e a dureza da busca de um calor em meio a
(sim)
o vendaval anunciado
que tudo arrancou e de tudo restou já nada
fugiu a família porão adentro
e lá desapareceu

Como abrir, novamente,
o ovo
banhar-me no amarelo da gema mole
espremida entre os pulmões, pingando
grudado de clara seca desde peito até
as juntas dos dedos, o entre-nádegas, a papada
a ramela nas pálpebras

um ovo rachado, quebrado, babando gema quente
dentro de minha barriga, por cima das tripas
e rins, amarela, amarela babada, pegajosa

eu sou uma lata de cerveja se entornando na sua própria goela de anel
eu sou um arroto engolido e fixado no ninho dos ossos
eu sou pneus queimando num microondas vivo
meus dedos pingam óleo diesel
tenho batom no cabelo. batom escuro. rouge,
camadas de maquiagem rímel base botox, laquê!
uma grande ópera ao umbigo magnífico

quem foi que disse que um raio não parte o mesmo coitado de novo e de novo
como machadadas caindo do céu
sou dividido por uma guilhotina ao meio
e minha alma... fica no meio
atingida em cheio

de resto, quem inda tem alma hoje em dia?
sua porta, um poço no meio de um
onde ele pode cair, afundar
onde transborda infiltra inunda encharca
olhem este homem! banhado de alma até os dedos!
pingando! pingando azul-cinza-roxo-lilás
amarelo-sol
as manchas de alma
pela cara, pelas calças
fez xixi? é pizza nos suvacos?
(suvaco do mundo)

a poesia começa nos olhos secos
narinas duras
a língua passeia
gotículas de lindo no meu braço
os pêlos arrepiados dançam
irrompo um carro setenta cavalos a quatro nós,
o vento de barlavento a bujarrona, a
parafuseta os pistões o timbre, catapulta,
aríete, ictiossauro pássaro fênix molho de pomarola borbulhando ácida,
tem spaghetti hoje no meu cerebelo,
jantar de todas as dores e caprichos risos
entupo. ignito. implodo.
jorra champagne do chão, levito alguns centímetros

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