Ix

outro dia estava pensando naquele filósofo (que foi tão influente em tudo):
seu nome era Ix.

muitos me diziam suas idéias belas e poderosas,
suas palavras mais verdadeiríssimas inusitadas, doces e mágicas, azul-arroxeadas,
que tudo dito jamais feito antes; era gênio, oh! arauto de novos tempos, sombra precedendo avalanches, dir-se-ia avant-garde!
e deixá-lo de lado só os mais velhos conservadores fariam,
e bla e bla-bla e blá.
e sendo eu um bom menino,
atento a fingir-me burguês e interessado em mudar o mundo,
localizei-o, e fui ouvi-lo falar.
estávamos então num seminário,
numa pequena cidade francesa, quem sabe
e várias personalidades disputavam o prestígio de derrotar seus adversários.
na época, estas eram ocasiões em que se forjavam correntes de pensamento,
venciam-se uns aos outros os intelectuais,
arena para assistirmos com pipoca os leões se atracando,
e podíamos pular lá dentro com eles.
tanto mais importante ouvir o tal demônio da moda:
presenciar feitos históricos,
dos quais leríamos depois nas antologias de textos canônicos,
e sorriríamos discordando e lançando a esmo aos alunos:
"ora, não foi bem assim;
lembro na época, ix pegara um resfriado..."
e por uma torrente de futilidades sem relação daríamos mais realidade àquele momento incompreensível, enquanto nele atrelávamos nossos nomes e corpos, de modo a partilhar de sua glória ante o mundo, tomando-nos por embaixadores daquela pequena data dita crucial, de que todos gostariam de ter tomado parte.
então estava eu sentado numa das fileiras mais ao fundo no anfiteatro,
e os grandes mestres sentados em suas poltronas preparavam-se para a luta,
que aí um dos mais aclamados vira-se ao nosso Ix e lança-lhe uma pergunta dificílima sobre um dos mais requintados artistas contemporâneos, tocam as três campainhas, apagam-se as luzes, e a Personalidade põe-se a falar.
é curioso, deste momento a diante só lembro lapsos de imagens,
acordava de vez em quando com os roncos dos vizinhos,
ou quando numa passagem bem divertida o técnico de som derrubou tudo;
sei que meu relógio estava quebrado, mas mesmo o som dos celulares apitando, ou quaisquer outras interferências bem-vindas não conseguiam afastar o torpor enorme que se nos apossara:
a voz de Ix;
um timbre,
uma maneira de concatenar frases,
um requinte especial de escolher seus ângulos de abordagem,
os exemplos que dava;
seus gestos na mesa;
suas pausas;
Não conheço viva alma que tenha conseguido ouvir por completo suas refutações revolucionárias.
sei que acreditei ter ouvido demasiado o suficiente,
e pus-me a citar Ix como exemplo a todos,
tomei parte em seu culto.
suas teses eram tão impossíveis quanto, e jamais as li.
conhecido meu, uma vez, deu-se à cachorra de trabalhar um pequeno ensaio da escola Ixista,
perdeu nisto boa parte de três anos,
sei que teve de interromper sua busca por falta de fundos,
por não conseguir nunca entender o maior pensador de todos,
por ser inábil.
eu mesmo dei vários cursos sobre Ix,
atribuía a ele as idéias que se me ocorriam as mais interessantes (jamais fui contestado),
e muito em breve os alunos me pediam a indicar leituras "legíveis",
e lhes escrevi livros de introdução ao Ixismo,
e criei minha corrente de interpretação ixista; não fui o único.
os congressos ixistas sempre foram extremamente incendiários,
e sempre os debates acalorados a qualquer tema de predileção ixista findavam a balançar as bases da vida mundana, e punham-se a ser vangloriados em todos os fóruns, e inspiravam movimentos e passeatas, e neles surgiam as lideranças do futuro.
quanto a Ix, o pobre tornou-se ídolo da geração;
não sei bem o que lhe aconteceu,
suas opiniões só me chegavam pela boca de outros;
então morreu recentemente, não sei bem se era velho;
em seu funeral acudiram milhares de fãs,
e dali marcamos o compromisso de nunca perdê-lo na memória, o grande mártir.
às vezes tenho impressão de a grande potência de Ix estar em sua maravilhosa manobra lógica, absolutamente indefensável: o sono.

Um comentário:

Pedro disse...

Ix já disse uma coisa parecida com seu texto, só que muito mais revolucionária.