Rádio

- Oi, meu nome é Rádio, e estou sem sintonizar uma estação já há duas horas e meia.
- Pessoal, dêem boas-vindas ao... Rádio.
- Bem-vindo (rádio).
- Bem, uh, Rádio, conte-nos como você começou a... beber.
- É assim. Tiraram meus óculos hoje, de repente. Bem rápido, assim; logo me deram de volta. Mas deu uma agonia sabe, eu de repente não via mais os outros.
- Rádio, você usa óculos?
- Ah, é que agora estou sem né? então. Eu sou míope, sem eles. Num segundo nós éramos Pessoa: uma grande Pessoa orgânica muito ajustadinha, as engrenagens se movendo loucas
- Desculpe, você não era um rádio?
- Eu era mais como mãos e olhares, quando você sabe onde colocá-los. Meus nervos se conectavam direto na carne dos outros. Eles se mexiam em mim. Eu neles.
(bocejos e tossidas na roda)
- De repente eu já não via mais ninguém. As pessoas se moviam sem mim. Desconectado. Desplugado. Me tiraram da tomada.
- Olhe, eu não estou entendendo. Alguém quer colocar algo?
- Seu Rádio, desembuche logo, ainda tem muita gente pela frente.
- Minhas mãos iam para a boca e eu fingia bocejar. Ligavam para mim e eu não atendia. Faziam piadas e eu não ria. Trocava as datas. Errava as contas.
- O que isso tudo tem a ver? Você não é alcoólotra?
- Comecei a ir aos lugares errados. Tentei marcar com o médico e ele não atendia. Fui no consultório e ele saíra há quinze minutos. Esqueci a carteira em casa.
- ...aí então você começou a beber.
- É assim, eu falo e ninguém me escuta. Oi, meu nome é Antena, estou transmitindo numa freqüência que ninguém ouve. Oi, meu nome é Rádio, eu não sintonizo em vocês. Oi, o mundo é uma grande Estação, e hoje eu acordei fora de sintonia, será que ninguém consegue entender isso?
- Mister Radio, you're not welcome here.
- Oi, eu estou tentando existir, Oi, alguém me escuta? eu nem enxergo mais ninguém. Minha cabeça está doendo, tirem suas mãos de mim! Oi, eu falo, falo, e eu estou caindo num abismo, e lá em cima o mundo e eu fico só na queda infinita vazia e sozinha, nesse buraco onde não há eco e não se ouve nada. (Il est fou!) Oi, eu sou um Rádio, eu preciso me ajustar, preciso apertar meus botões e manivelas: eu vou almoçar na hora certa e tomar café depois, vou dormir oito horas e beber vodca até cair, vou fumar que nem uma máquina e vender minha alma a todo mundo; talvez assim eu sintonize em algo, eu troque de freqüência e encontre alguém que me plugue de novo no mundo, alguém que pegue meus fios e veias e engate nos seus, pegue minhas mãos e saiba onde pô-las. Oi, vamos transar? Oi, vamos fundir nossos corpos? que eu preciso sintonizar no mundo, eu preciso crescer raízes, crescer âncoras - porque aqui onde eu moro venta muito sabe? Oi, meu nome é Folha e eu caio sozinho, não encontrei nenhuma teia de aranha, nenhuma amarra. Oi, Oi! tirem essas mãos de mim! Eu vou com vocês, me levem para a prisão, me joguem numa vala qualquer, eu devo estar bêbado! bêbado demais para os alcoólotras, eu achei que aqui saberiam falar comigo. Oi, meu nome é Mãos, e eu sou dois, e é por isso que eu fumo e bocejo e coço o cabelo e me escondo nos bolsos, e é por isso que eu me rôo inteiro e me agarro nos outros, e é por isso que eu quero sair nu no frio e juntar meus membros, eu quero dançar uma dança no chão certo, uma dança que pise nos pés bonitos que gritem, que gritem muito! Oi, meu nome é Rádio e é Antena e é Mãos, eu queria ser os três, dançando como os dedos num teclado, e existindo em uníssono, até que minhas pegadas fossem não só tristeza e ruído - porque eu nunca sintonizo! - até que saísse música dos meus olhos e das minhas mãos, dos meus suspiros e de quando eu tremo muito no escuro, sozinho e distante como estática perdida: até que essa estação que não encontro fosse criada: até que meus pés dançassem como mãos num teclado, formando palavras e bonitezas e todos me lessem os olhos e me soubessem consigo, universo, pessoa-mundo organismo, vida, nós Folhas espalhados unidos pela teia de aranha: e quando ventar farfalharemos sintonizados como rádios, seremos música com nosso farfalhar lindo...!
...
- Oi, meu nome é Paulo, e eu...

6 comentários:

Pietro disse...

eita ferro
viajei
ahaha

Cavalo Bundas Patas disse...

porra genial! vou reler umas mil vezes antes de compreender por inteiro, se possível for

Cavalo Bundas Patas disse...

puta que pariu, moleque. temos aqui uma obra-prima!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Cavalo Bundas Patas disse...

obs: o final, o 'oi, meu nome é Paulo, e eu..." é primoroso

A. disse...

tenho que dizer: este 'oi meu nome é paulo' é idéia da lili, não é incrível?

Antonia disse...

euri.